Quartas trabalha pensamentos, imagens, ritmos, expressões e significados em torno de seu título

A primeira sensação que temos ao ouvir o EP é a de que, nele, Saskia deixa ressaltar um lado mais melódico, ainda que as músicas ganhem densas camadas de produção

Texto por Pérola Mathias

 

O EP Quartas, de Saskia, lançado em abril de 2022, trabalha pensamentos, imagens, ritmos, expressões e significados em torno de seu título. O EP com cinco faixas é o primeiro trabalho musical solo da artista depois de sua estreia em 2019 com o disco Pq. Entre um e outro, Saskia realizou diferentes projetos artísticos, como o filme “Caixa Preta” (2022), dirigido por ela e Bernardo Oliveira.

A primeira sensação que temos ao ouvir Quartas é a de que, nele, Saskia deixa ressaltar um lado mais melódico, ainda que as músicas ganhem densas camadas de produção. O trabalho apresenta algumas paisagens sonoras soturnas e misteriosas, que deixam surgir beats mais lentos do que os geralmente feitos por ela, sobretudo nas três primeiras faixas.

“Quarta Trave” foi lançada como single em março de 2022. A música traz um fluxo cotidiano de consciência e de ação, no qual Saskia trabalha os diferentes significados das palavras, dando complexidade à sua poética. A trave, tronco ou objeto comprido que forma uma estrutura, delimita o espaço do acerto e mostra onde é que se faz o gol.

“Quarenta anos sem ver nada/quarenta e quatro horas sem palavra/a força quase engasga/a paz quase entala/da sala pro quarto/do quarto pra sala a quarta nunca acaba”. Estes primeiros versos até parecem se remeter ao período de isolamento social. No entanto, não parece ser disso que se trata, mas sim de um processo individual de criação e suas fases: a trava, o tranco, a destrava. A história se desenrola em uma jornada sem destino, na qual se encontram personagens e elementos anônimos das ruas. Som e letra se entrelaçam na construção de um total clima de deriva urbana – “a noite vai me engolir / até eu me esquecer de mim”.

 

 

A referência ao futebol em “Quartas” aparece de novo na segunda música, “Quartas de final aos 45 do segundo tempo”, expressando também um senso de urgência. O que pode acontecer no último minuto que decide um jogo? A música é, como a anterior, uma espécie de crônica contemporânea. Ao narrar um flerte baseado em trocas de beats, a letra usa de uma série de aliterações cujos sons da pronúncia se entrecruzam com o ritmo da base, ainda que de forma não compassada: “duvido que ele me note/mas tu fez eu me sentir/a estrela da noite/eu só lembro de você naquele front/na semana seguinte/eu vi tu postar um beat”.

Tanto na primeira faixa, quanto na segunda, o ouvinte vai acompanhando um percurso indefinido, moldado por acontecimentos extemporâneos, através dos quais sacamos as ambiguidades do jogo de palavras de Saskia e também de suas ideias. A musicalidade da produtora gaúcha explora, desde seus primeiros trabalhos, encaixes rítmicos imperfeitos ou, pelo menos, que fogem a grades e sequências específicas definidas por estilos musicais identificáveis. Talvez até o termo “híbrido” seja ainda insuficiente – ou suficientemente gasto – para falar de seu som.

À medida que o EP avança, Saskia parece liberar ainda mais de si e de seu universo imaginativo. Até surgem algumas características marcantes de seu disco Pq, no qual se destacava um confronto mais direto com a realidade social. Porém, o deboche e a ironia presentes no trabalho de 2019 são mais sutis aqui.

“Quarta Rainha” é um solilóquio, em que os pensamentos e preocupações tomam forma dentro de sua cabeça e irrompem na madrugada em claro: “todo mês tem um dia de seca/tento encontrar deus nessa caneta […] todo mês chega mais uma conta/e eu não escuto as palmas quando eu pago à vista”. Nessa música, algo oposto ao que descrevi antes acontece: a imprevisibilidade da construção musical de Saskia parece sair do primeiro plano – ainda que ela continue lá –  e deixa que uma levada mais próxima ao trap ganhe protagonismo, como na música de N.I.N.A ou Tasha & Tracie.

“Quarta Obra”, quarta faixa, chega para quebrar qualquer possível linearidade, seja de ideia, de ritmo ou de poesia. Aqui o grave do bumbo dialoga com sons que lembram improvisos de instrumentos de sopro, soando como uma espécie de techno free jazz. A forma como Saskia a canta lembra o estilo de Laura Diaz, do Teto Preto.

Saskia chama sua própria produção de “psico-música”. Ela não chega a se referir à ideia de “psicomagia” do cineasta Alejandro Jodorowsky quando utiliza o termo, mas o explica como um fluxo de criatividade em meio ao caos, cujo resultado é a quebra do padrão sonoro. No entanto, ambos convergem no pressuposto de que atos poéticos concretos são realizações psicológicas que realizam transformações reais.

Afora isso, a música de Saskia e o embate que ela cria com seu padrão rítmico disforme não tem nada a ver com pressupostos da arte branca ocidental. Pelo contrário. Sua capacidade de criar ambiguidade no som, nas letras e em suas performances, que são audíveis no EP através das formas de entoação, dos timbres que ela busca e pela colagem de camadas de voz, recria e reinventa protótipos ou paradigmas. Como dizem os versos “um fim é quase um começo/se eu não me intrometo eu não ultrapasso”.

 

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