Nos horizontes de Saskia

A artista recusa e atualiza o gentílico “gaúcha”, plana por rotas tortas e dá vida a uma nova persona artística no EP Quarta

Texto por Brenda Vidal
Foto por Luciana Barreto

Convenci o meu pai a me levar na tal da Vorlat, festa de música eletrônica alternativa, que ia rolar na Rua dos Pescadores, em plena Ilha das Flores, em Porto Alegre – mas não exatamente aquela do documentário de mesmo nome, de 1989, do cineasta conterrâneo Jorge Furtado. Coloquei a roupa que mais exalava a energia de underground frito e saí de casa, apesar da cara visivelmente preocupada da minha mãe. No local, se enxergava um porão iluminado por luzes vermelhas, um pátio enorme, daqueles de dar voltas e se perder, e o horizonte – um céu super escuro, colado no negrume do rio Guaíba sem a luz do dia. 

Foi dentro da casa, naquele cenário ora encarnado, ora acerejado, que vi Saskia tocar pela primeira vez. Ela me despertou interesse, além de uma sensação de acolhimento e admiração. De 2016 pra cá, ascendemos, nos reencontramos, e a vi – ainda que de butuca – colocar um outro Sul no mapa e se tornar algo para além dele. Vivendo em São Paulo, ela se consolida enquanto multiartista, com um portfólio fractal e híbrido. Em 2019, lançou o seu álbum de  estreia, PQ, pelo selo QTV, tendo Ava Rocha e Negro Léo como mentores musicais. Ao lado de outres artistas de Porto Alegre, formou os coletivos Zona e Turmalina. 

Compôs e editou o curta Outra Coisa.print (2020), integrou as programações do IMS e Itaú Cultural, colaborou com nomes como Atransalien e Jota Mombaça e foi uma das organizadoras do acervo contemporâneo Ciranda do Gatilho, junto de Léo e Bernardo Oliveira, entre outros feitos.

Saskia quer deixar o caos mais à margem para pintar os seus novos caminhos em tons pastel. A subjetividade, que irrompe as paredes do interior e mistura águas doces e salgadas, é suave. Essa energia permeia o intimista, porém convidativo EP Quarta, o seu trabalho lançado pela Balaclava Records. Funk, flerte, samba, trave, punk, cotidiano, no wave, Brás, Vaporwave, preta do sul, jazz, compositora, trap, desbravadora… Sim, a proposta do lírico e sonoro é quebrar a quarta parede. Aqui, conversamos sobre músicas novas, relembramos sua trajetória e conversamos sobre o seu processo de “desembolhamento” cultural.

Como é a relação da sua família com a arte? 

Damos muita prioridade à cultura, como se fosse o conhecimento mais valioso que existe. Por exemplo, a minha irmã é formada em Artes Plásticas e tive o apoio da minha mãe para ser artista. A arte sempre esteve ali, cresci em uma casa onde se escuta rock e lembro, até hoje da primeira vez que peguei o Clara Crocodilo (1980), LP do Arrigo Barnabé. Olhei pra capa e fiquei ‘bah’, impressionada.

De que maneiras a energia artística se manifestava na Saskia criança?

Desde que eu nasci, ficava mexendo nas coisas para fazer barulho, e antes de falar, eu já ficava murmurando sons com a boca. A música sempre esteve presente no meu corpo. Lembro de descobrir a minha voz bem cedo porque eu tinha um ursinho que, quando você apertava no coração dele, a tua voz era gravada, e quando tu apertava de novo, ele reproduzia a gravação. Isso mudou a minha vida. Eu passava o dia inteiro com o ursinho, aprendi a ouvir a minha voz com esse brinquedo. Teve um dia que a mãe estava fazendo um arroz e escutando o vinil do filme Hair. Tem a música “Easy to Be Hard”, que é uma negona que canta pra caralho! Com sete anos, subi no sofá e cantei essa música, acho que foi quando eu descobri que podia modular a minha voz do jeito que queria, e usá-la como instrumento. A minha mãe se emocionou muito, até queimou o arroz. No fundo, sempre soube que seria artista.

Você cresceu em Porto Alegre, no Guarujá, bairro da zona sul que fica próximo ao rio Guaíba, mas também na Cidade de Torres, que fica no litoral norte. As águas sempre estiveram na sua trajetória, como elas impactaram seu jeito de compor?

Nossa, que pergunta foda, mulé! Há pouco tempo, estava exatamente pensando sobre como ter acesso a um horizonte muda a tua percepção de vida. Lembro de ir à praia e olhar a imensidão, pensar sobre o quanto o horizonte é infinito, ao mesmo tempo que, se eu andasse reto, chegaria em outra terra em algum momento. Aquela sensação de tu se sentir menor, não ter a grandeza de achar que o seu universo é único. Eu quero ver o que tem atrás do horizonte. Eu tinha a sensação de quando botava para fora a minha pequenez na música, de alguma forma, me conectava à imensidão do mundo. O Guarujá é a última pequena orla de Porto Alegre, é um mini-paraíso com umas passagens que levam para o meio do mato. Morando em São Paulo, fico procurando o horizonte.

Acho que esse ano será o que vou curtir um horizonte que não o do Sul. Fico pensando muito na Bahia… Quando morava em Torres na adolescência, estar perto do mar foi algo profundo na minha cabeça e acabou influenciando a minha persona artística. Eu morava numa rua afastada do centro, então o silêncio e a solidão me deram liberdade para criar mais. O mar e o Guaíba tem total conexão com a profundidade da minha criatividade.

O início da sua carreira é conectado à cena de música eletrônica que emergiu na primeira metade dos anos 2010, impulsionada por coletivos e festas de rua. Na minha memória, festa frita e saskia são sinônimos, mas como você foi parar no front disso tudo?

Vim para Porto Alegre depois de passar no vestibular da UFRGS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mas no final das contas, a minha matrícula não foi homologada. Senti um baque, mas resolvi ficar depois de conversar com a minha mãe. Me inscrevi em um curso técnico de informática e tentei um estágio. Ela me deu um mês de curso, no seguinte, eu já estava estagiando no atendimento psiquiátrico público da prefeitura. Tudo o que vi ali me atravessou bastante poeticamente. 

De todo modo, já gravava as minhas coisas em Torres. Eu tinha a brisa de ser um bot: fazia perfil fake, mandava meu som pra todo mundo, o Facebook até me bloqueou por mandar link para gente eu nunca vi na vida! Ia em grupos como “pessoas que gostam de Radiohead”, “pessoas que gostam de underground”… Numa dessas, o [Carlos] Tupy (musicista, guitarrista de Luísa e os Alquimistas) trabalhava como curador e agente da Casa Frasca, um espaço de arte alternativa. Ele ouviu a minha parada e me chamou para estrear, mas falei que tinha gravado mil camadas de guitarras e não sabia tocar fora de casa. Ele falou: “Mano, traz tuas bases em um pendrive, canta em cima e já era”. Isso virou uma chavinha em mim, porque comecei a fazer em tudo que era lugar. Lembro de um momento muito icônico em uma edição da festa de rua Arruaça, em que cantei em um techno que estava rolando e metade das pessoas da cidade me conheceram por conta dessa vez. 

Você entrou pra estatística da diáspora artística que migra para São Paulo. O que determinou a sua ida e o que te faz permanecer aí? 

A minha vida artística foi demandando que eu morasse na cidade onde tudo acontece, porque vi que a arte tem um certo valor aqui e que a música poderia ser mais do que um hobby. Em 2019, comecei a viajar e percebi que ficava inspirada após passar um tempo em São Paulo. Fui empurrando com a barriga, mas, no ano seguinte, fazendo um trabalho aqui e outro ali, até consegui me manter durante durante o ano todo. Morei um tempo na casa da Malka (produtora e musicista), gravei o Quarta no estúdio dela. Em 2021, voltei para Porto Alegre por conta do projeto Feijoada Turmalina, que foi aprovado em um edital Natura Musical. É uma espécie de aquilombamento. Fiquei na cidade durante uns 10 meses e em fevereiro voltei.

De onde nascem as letras e as sonoridades que dão forma ao trabalho? 

Nasce da pandemia e da música no contexto virtual. Eu não queria ter a obrigação de me manter presente ou online. O título tem a ver com estar em um quarto na quarentena, e pela quarta-feira ser um dia no meio da semana. Entrei em um estúdio com tudo dentro, então acabei procurando sons mais orgânicos para tentar quebrar a minha ideologia eletrônica. Eu trazia muito a pauta política, mas percebi que queria falar de outras coisas, como o amor. Antes eu não conseguia falar disso. Por muito tempo, quis criar uma persona que não fosse fofa, nem indie, e que precisava falar com uma voz mais grossa ou vilanesca em cima de um beat muito forte. Escutava Death Grips, queria assustar todo mundo. Hoje quero contar outras histórias, outras fitas… Cantar com uma voz mais suave. Dependendo do aprofundamento cultural, a gente se torna meio elitista. A intelectualidade, a bizarrice disso tudo, faz com que tu pare de conversar com o resto do mundo. Quero quebrar essa dialética de embolhamento. Quero ser menos USB, mais P10.

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