Em entrevista exclusiva, black midi comenta o seu novo trabalho Cavalcade, ainda mais complexo e desafiador do que o seu disco de estreia, Schlagenheim.
Texto Fernando Dotta
Foto YIS KID
Em apenas dois anos após o lançamento do seu álbum de estreia Schlagenheim, a banda inglesa black midi passou de aposta do novo rock britânico para um dos importantes e renomados grupos em atividade no mundo. Entre os fãs fascinados pelo grupo, aqueles que não se cansam de comentar nas redes sociais ou em entrevistas, nomes como Julian Casablancas, St. Vincent, Matty Healy (The 1975) e Ed O’Brien (Radiohead). Foram nomeados ao Mercury Prize em 2019, assinaram com a icônica gravadora Rough Trade, e possuem uma agenda intensa de shows esgotados, turnês e apresentações nos palcos dos festivais alternativos mais relevantes do momento.
Em março de 2019, entrevistei o black midi pela primeira vez, quando conheci a banda pessoalmente antes do primeiro show dos músicos em Nova Iorque. Você pode ler sobre esse dia aqui. O que nos separa desse passado recente, mas que hoje já parece muito distante, é uma pandemia em escala global que ainda nos afeta gravemente, principalmente a nós, brasileiros e desgovernados. Foi a epidemia que nos fez cancelar os shows anunciados para março de 2020, com produção da Balaclava, e que serão reagendados para 2022.
Foi durante esse isolamento que surgiu Cavalcade, uma continuação dinâmica e criativa do Schlagenheim. Trata-se de um álbum complexo, teatral, dramático, alternando entre momentos extremos de tensão e calmaria, o que torna a obra ainda mais impactante e excitante de ser ouvida de uma só vez.
Cavalcade “escala novas alturas, extraindo de uma infinidade de gêneros e influências” conforme citado no novo release da banda, e traz uma nova faceta do black midi, composto hoje por Geordie Greep (guitarra, voz), Cameron Picton (baixo, voz) e Morgan Simpson (bateria). Com a saída temporária do guitarrista/vocalista Matt Kwasniewski-Kelvin para cuidar de sua saúde mental, o trio completou a sua formação base com os talentosos Kaidi Akinnibi no saxofone e Seth Evans nos pianos e teclados.
O disco de oito faixas conta com produção brilhante e mixagem que beira a perfeição por John ‘Spud’ Murphy, exceto na faixa de abertura “John L”, assinada pela aclamada produtora italiana Marta Salogni. Os fãs podem encontrar em todas as plataformas digitais e com lançamento físico em CD e vinil pela Rough Trade Records.
Em um exercício divertido para captar as mais várias referências durante a audição, pode-se encontrar elementos como a new wave de King Crimson, a insanidade e as quebras de tempo do Primus como em “Hogwash and Balderdash”, as loucuras orquestradas de Frank Zappa, o jazz fusion refinado de Kamasi Washington, momentos cinemáticos à la Radiohead e Grizzly Bear, como na belíssima “Diamond Stuff”. O canto crooner de Geordie tem um certo ar de Scott Walker e Frank Sinatra na faixa que encerra o álbum “Ascending Forth”. E há até mesmo uma carinha brasileira, um gosto de bossa nova em “Marlene Dietrich”, além de climas que remetem aos trabalhos de Lô Borges solo e no Clube da Esquina.
Dois dias antes do lançamento, conversei com o Cameron via Zoom para entender as visões deles sobre Cavalcade e o processo das novas músicas.
Dotta: Primeiramente, parabéns pelo disco! Eu gostei muito, de verdade.
Devo dizer que Cavalcade me pegou de surpresa. Apesar de saber que vocês queriam algo diferente do primeiro e pelo fato do black midi ser uma banda em constante evolução, mas mesmo assim, eu não soube descrever ao certo “como soa o novo disco?”, quando alguns amigos próximos me perguntaram após a primeira audição.
Para alguém que não está interessado em rotular, limitar a um gênero ou referenciar outras bandas diretas, como você descreveria o Cavalcade?
Cameron: Empolgante, dinâmico, louco e bonito.
Dotta: Em comparação ao Schlagenheim, o novo álbum soa mais completo em seu conceito e mais preciso em suas intenções. Quando vocês estavam compondo essas músicas, houve uma busca por uma sonoridade específica que queriam atingir? Algo como “Eu quero que soe como ESSE disco ou que traga um clima como AQUELE”?
Cameron: Acho que nunca tentamos soar com algo exato. Por exemplo, em “Dethroned” na parte (Cameron canta um trecho) o Geordie tinha um riff e nós comentamos “isso é legal, parece um reggae” e então decidimos chamar isso de “parte reggae”, mas nunca com referências imediatas a outras músicas.
No disco anterior, por causa de um certo ritmo das batidas de uma das faixas, demos a ela o título de “Reggae”, mas decidimos que dessa vez não seríamos preguiçosos em só nomear a primeira coisa que vem à mente. No Cavalcade, tivemos tempo para pensar tudo com calma, trabalhar bem os arranjos, sendo que parte disso já teria acontecido mesmo sem a pandemia, outra parte foi acelerada pelo lockdown.
Dotta: Como foi o processo de composição com os integrantes separados? Vocês precisaram imaginar os arranjos dos outros? Além disso, houve um consenso de evitar escrever sobre temas de isolamento?
Cameron: Metade do álbum foi composto separadamente e o restante foi durante nossas turnês ou juntos em uma sala de ensaio. É difícil, por exemplo, imaginar a forma como você quer que a bateria soe, porque o Morgan é um baterista tão único e pode contribuir tanto, mas uma vez que estamos juntos numa sala, essa dificuldade desaparece.
Nós acabamos reconstruindo algumas partes dos nossos sons em conjunto, passamos cerca de um mês reunidos, e a única faixa que compusemos juntos nesse período e que entrou no disco foi “Dethroned”. Foi um formato interessante de seguirmos e fico intrigado em saber como seria sem a pandemia.
Nós estávamos prestes a ir para o Brasil, Chile, México, Colômbia, depois o Coachella e uma turnê pelos EUA no verão, então seria curioso ver como iríamos lidar para seguir nessa nova direção musical. Acredito que essa mudança forçada foi uma das coisas que nos beneficiaram no lockdown. Sobre as letras, eu realmente não queria escrever nada sobre isolamento, porque já havia se tornado um clichê naquele momento. Para mim, o álbum da Charli XCX (how i’m feeling now) foi o único aceitável tipo de arte relacionada ao lockdown. Não queríamos criar algo que ficasse datado e também não sabíamos quanto tempo duraria essa pandemia.
Dotta: Compor em casa acabou sendo mais confortável do que fazer jams ou vocês já estavam tentando algo novo?
Cameron: É algo que eu já costumo fazer quando estou em casa, de qualquer forma. Eu vinha compondo como exercício pessoal, não necessariamente pensando em escrever algo que se tornasse da banda. Acredito que o Geordie estava igual, compondo coisas dele por vontade própria e não porque isso poderia ser o nosso próximo trabalho. Sempre trocamos sons e ideias que mais gostamos, aí decidimos focar em uma música por vez.
Dotta: Me conte sobre o processo de escolha em trabalhar com (os produtores) Marta Salogni em Londres e em seguida com o John “Spud” Murphy no Hellfire Studios em Dublin. Quais foram os pontos cruciais que eles trouxeram para as gravações?
Cameron: Antes do lockdown, queríamos gravar algumas demos, mas quando tomamos essa decisão, coincidiu de ser na mesma semana em que a covid piorou e os casos começaram a aumentar por aqui. Antes da pandemia, vínhamos pesquisando possíveis produtores, uns nos Estados Unidos, outros na Europa. Quando olhamos para as opções no Reino Unido, a Marta foi um nome que chamou nossa atenção, principalmente por seus trabalhos com a Björk e créditos de mixagem em que ela esteve envolvida.
Conversamos com algumas pessoas, e em nossa reunião com a Marta, ela entendeu completamente sobre o conceito que queríamos da “quarta parede” e uma mixagem estilo ECM super natural, mas também atingir sonoridades malucas, então pensamos que valeria a pena seguirmos com ela para ver como seria. Conseguimos gravar a sessão de “John L” bem rápido: fizemos em um dia todos os instrumentais e os overdubs, no dia seguinte foram vozes e mixagem, e os violinos e saxofone acabamos resolvendo mais adiante nas gravações com o Spud.
O que você ouve ali foi gravado em menos de 3 dias. Era para termos feito mais sessões com a Marta, tínhamos em mente algo bem dividido, com a ideia de termos mais de um produtor no disco. Sempre curtimos quando, por exemplo, em álbuns de hip-hop há vários produtores e queríamos testar com um álbum de rock para ver como isso poderia soar, mas se tornou impossível de fazermos mais dias de sessões com a Marta naquele período. Espero que a gente volte a trabalhar com ela mais vezes, porque nós todos gostamos muito daquela experiência no estúdio.
Fomos recomendados então pelo Geoff Travis (fundador) da Rough Trade a trabalhar com o Spud, por ele ter gravado os discos da Lankum, e como fãs da banda, achávamos que os álbuns soavam muito bem. Fizemos um Zoom para conhecer o Spud, porque obviamente não podíamos viajar na época, e ele acertou em cheio nas mesmas referências que a Marta trouxe para nós. Além disso, um ponto importante foi ele mencionar que tinha vários instrumentos disponíveis para usarmos nas gravações, um fator que fez toda a diferença no Schlagenheim quando trabalhamos com o Dan Carey.
O processo de gravação com o Spud foi incrível. Fomos para Wicklow Mountains, no interior de Dublin, e esperávamos gravar só três faixas, mas acabamos gravando as bases do disco todo. A cada dia, os sons ficavam exponencialmente melhores e então fomos adicionando cada vez mais camadas por cima dos baixos, guitarras e baterias. Estávamos bem contentes com o resultado e, após cinco dias de gravação, tivemos que voltar para casa, porque os nossos dias reservados no estúdio já tinham acabado.
Ouvimos todo o material e pensamos em quais elementos gostaríamos de adicionar e trabalhar nos arranjos. Foram cerca de sete dias em Londres com o Spud e o engenheiro Ian (Chestnutt). Eles vieram e trouxemos vários amigos para gravarem partes extras: Kaidi (Akinnibi) no saxofone, Seth (Evans) nos teclados, Joe Bristow nos trombones, Blossom (Caldarone) no cello, Joscelin (Dent-Pooley) nos violinos e Rosie (Alena) nas vozes.
Bom, esse foi o processo do disco. Acredito que durou menos dias do que as gravações do Schlagenheim, mas no total foi mais longo, do final de julho até o fim de outubro para captar e gravar tudo.
Dotta: Quanto à escolha dos singles, vocês tinham a chance de optar por faixas mais leves e melódicas como “Marlene Dietrich” ou “Diamond Stuff”, mas preferiram apresentar três caóticas. Foi uma decisão estratégica na intenção de guardar essas calmas para a experiência exclusiva do álbum completo?
Pergunto isso também porque ao mesmo tempo em que acredito que as canções são auto-suficientes e contam narrativas próprias, o público só conseguirá compreender essa obra por completo quando ouvi-la do início ao fim de uma só vez.
Cameron: Sim, nossa ideia era surpreender as pessoas. O grande lance sobre “Marlene Dietrich” é a jornada até ela, começando o álbum com o black midi rápido e barulhento para, logo em seguida, uma mudança brusca e imediata. Acho que se nós tivéssemos apresentado ao público essas faixas antes… Bom, acredito que elas fazem muito mais sentido no contexto do álbum, como você disse. Quando finalizamos o disco, tínhamos certeza que queríamos “John L” como o primeiro single, que seria a música mais apropriada. Em seguida, viriam “Chondromalacia Patella” ou “Slow” sem ordem exata e foram pensados assim os lançamentos.
Dotta: Vou finalizar dizendo que, ao meu ver, Cavalcade soa como a realização de uma vida inteira. É uma obra incrível que traz elementos que somente o black midi como banda poderia colocar sem soar excessivo ou até cafona. É um álbum que poderia ter sido feito por um grupo com décadas de maturidade e uma discografia extensa, mas vocês têm somente 20 e poucos anos e estão prestes ainda a lançar o segundo trabalho.
Vocês claramente sabem o que estão fazendo e provaram lidar bem com expectativas externas sobre a arte de vocês, mas internamente, há uma pressão de sempre ter que surpreender o público ou trazer algo inesperado?
Cameron: Muito obrigado pelo que você disse, eu agradeço de verdade. Espero que o próximo disco seja a realização de duas vidas inteiras! Você sempre tem que dar seu máximo e tentar fazer algo que seja empolgante. É importante criar esses desafios, sair da zona de conforto e mudar as coisas de lugar. Após um período em turnê do nosso primeiro disco, algumas coisas foram se tornando padrões e compormos em forma de jams foi deixando de ser algo excitante ou perigoso para nós. Não nos baseamos em pressões externas, buscamos o que pode ser empolgante e desafiador.