Com sonoridade ímpar, “Em Nome da Estrela” inaugura um novo capítulo na carreira da artista: “Quem apita no meu terreiro sou eu”
Texto Thuanny Judes
Foto Gleeson Paulino
Inspirada pelo brilho do ouro de Midas, Xênia França coloca Em Nome da Estrela no mundo. No entanto, ao contrário do mito que envolve o rei romano, a cantora não lança luz à ganância humana, e sim ao poder ancestral, ao autoconhecimento e ao renascimento. Lançado no início de junho, o álbum tem produção de Pipo Pegoraro, Lourenço Rebetez (também colaboradores do disco anterior, Xênia, de 2017) e da própria compositora. Composto por 12 faixas, nove canções e três interlúdios, Em Nome da Estrela nos presenteia com uma sonoridade virtuosa e cheia de simbolismos, porém difícil de ser definida. Pode-se dizer que é tão livre quanto o atual momento da artista, que está cada vez mais consciente de si e de seus desejos: “Quem apita no meu terreiro sou eu”, diz a cantora. Em entrevista à Revista Balaclava, Xênia França discute os caminhos que tornaram o disco possível, leia a seguir:
Como você está?
Bem relax, feliz de lançar o disco. O processo de feitura foi bem desafiador, agora sinto um alívio. Está sendo bem recebido, todo mundo já falando e gostando, o que me deixa muito feliz. Em geral, não penso muito nisso enquanto eu estou fazendo: se as pessoas vão gostar ou não. Mas no fundo, no fundo, sempre tem a expectativa de que se conecte com as pessoas.
Por que você decidiu lançar “Renascer” como single?
Alguém me perguntou isso lá no Instagram [risos]. Foi de onde saíram as outras, de onde saíram os motivos para, inclusive, querer fazer um disco, diante da situação pessoal e coletiva. Eu já tinha a demanda de fazer o projeto antes da pandemia. Ganhei o projeto da Petrobrás em 2019, a patrocinadora desse disco, mas por causa de agenda eu só consegui me organizar para começar a trabalhar nele em 2020. Veio a pandemia e parou tudo. Retomei ele em 2021. Nesse processo, tive a oportunidade, me coloquei à disposição, de dar continuidade a um trabalho que eu já tinha começado, de tratamentos psicológicos, emocionais, espirituais. Me permiti que, indo profundamente nas minhas questões, tivesse um pouco de contato com elas para reconhecer as minhas sombras, as minhas fragilidades, mas também reconhecer o meu brilho. Foi daí que veio o desejo de continuar sendo artista, de criar o disco, de exercer o meu direito universal de me desenvolver, que foi para isso que eu vim aqui e não abro mão disso. Tenho quase que uma obsessão pelo autodesenvolvimento, pela auto lapidação, que é uma coisa que, em geral, as pessoas não sabem muito, não tinham muita noção, e eu permiti que, nesse disco, as pessoas conhecessem esse lado meu. As pessoas me chamam de mística, mas é mais um desejo, uma ação, uma atitude vital. Na maior parte do tempo, quando eu não estou trabalhando com música, estou lendo sobre assuntos holísticos, astrologia, autoconhecimento, ciência, sempre relacionando tudo e tentando colocar na prática, na minha experiência de vida, dia a dia.
Como aconteceu o pontapé do disco?
Foi por isso que eu comecei com ela, um presente que eu ganhei da minha espiritualidade para conseguir compreender melhor a minha experiência, me reconhecer, me auto validar. Essa pergunta me veio durante a pandemia: “o que é isso que você quer tanto do mundo, quer tanto dos outros, mas não está dando a si mesma?”. Depois disso veio uma melodia e começou a vir umas coisinhas. Escrevi a letra após viver uma experiência espiritual no meu terreiro. Depois desse mergulho, fui adquirindo autoridade para ser quem eu gosto de ser. Reconhecer que sou uma pisciana mais abstrata, que eu gosto de abstrair. Reconhecer esse dom que é a imaginação, o livre arbítrio que nos trouxe até aqui como espécie, criando as nossas próprias realidades. Por causa desse teatro social, essa grande pressão e opressão social, muitas vezes, a gente não se permite dar vazão à imaginação. Então, dessa música, vieram as outras dimensões do que viria a ser o disco. Para poder ir lá e imaginar que nos confins do universo colapsa uma estrela, e dessa viagem interestelar vêm os materiais necessários para fomentar a vida na Terra. Essa atitude espiritual que conecta a nossa experiência vital ao divino, tudo isso veio de “Renascer”, veio do desejo de botar para fora essa minha visão de mundo.
Você fala sobre o poder tecnológico ancestral. Qual é a natureza desse poder?
O álbum é uma plataforma de expressão. No disco, estou falando de experiências holísticas, lisérgicas, no intuito de me compreender melhor, mas ao mesmo tempo, tentar sair do papo místico. Fica essa coisa meio lúdica, sendo que não é. Não estamos aqui gratuitamente. Existe um wifi vital que faz as árvores do mundo inteiro se comunicarem pelas suas raízes. O próprio ar que a gente respira. O tanto de trabalho que o nosso corpo está fazendo e a gente não tem que fazer nada para esse corpo trabalhar. Está ligado onde? O que anima essa vida? Como estamos vivendo uma era de muita distração, perdemos um pouco da experiência do nosso poder. Tenho tido a oportunidade de poder ler essa tecnologia ancestral dentro do próprio Candomblé e na alquimia. Recobrar essa memória é o que realmente me dá poder, a força que eu preciso para me orientar nesse mundo. É tempo de lembrar que esse amor é uma tecnologia de alta frequência, que ele foi manifestado há muito tempo, a mesa está posta, a gente só precisa ir lá pegar, e se apropriar disso.
O disco é sofisticado e carregado de ancestralidade e simbolismos. De que formas isso se manifesta na musicalidade?
É sobre honrar esses mestres que abriram caminho para a gente passar, eles criaram coisas extraordinárias numa época em que não existiam tantos canais de expressão. Eu acredito muito na energia que a ancestralidade é, para além do étnico, que a cultura pop acaba querendo colocar como uma coisa de prateleira. Na verdade, essa musicalidade, essa forma de expressão artística, é universal. Não sei se você já teve a oportunidade de entrar em um terreiro de Candomblé. No momento em que um tambor faz um determinado tipo de toque, é o convite para a entidade vir e circular entre a gente, são códigos universais.
Quais são as suas influências artísticas?
Me aproprio dessas referências dentro de uma linguagem pop. Hermeto Pascoal, Herbie Hancock, Wayne Shorter, Moacir Santo Maestro Letieres Leite… As pessoas que vivem e tocam comigo. Essa é a música que me toca desde sempre. Na hora de fazer do meu jeito, sempre tem essas estrelas, esses mestres maravilhosos como guias, tanto a mim quanto a todas as pessoas que trabalham comigo.
O disco tem duas regravações: “Futurível”, de Gilberto Gil, e “Magia”, do Djavan. Como se deu a escolha dessas canções?
Elas têm tudo a ver com o que eu queria dizer, não ia dizer aquilo que Gilberto Gil disse com tanta precisão. De todas as que ele fez, essa sempre me tocou muito. Para mim, é uma profecia mesmo. Essa música foi feita em 1969, quando Gil foi preso pela ditadura, no mesmo ano, o homem foi à Lua. Sinto que é como se Gil tivesse recebido uma anunciação, uma profecia do tempo que a gente está vivendo agora, era quase minha obrigação trazer essa música de 1969 para 2022. E eu sou muito devota de Gilberto Gil. Acho que ele é mais que um músico. Gil é um poeta, um alquimista, um mago. Realmente a gente tem muita sorte de ele ser nosso, de ele ser brasileiro, tenho muito orgulho. Tanto ele, quanto Djavan, para mim, tão no panteão das grandes entidades musicais do mundo. Para mim, tem essa coisa amorosa de poder fazer essa ligação como artista do meu tempo com essa geração que entregou tanto, que já fez tanto pela música brasileira. Eu me sinto muito honrada que eles tenham cedido as músicas para a gente trabalhar.
E “Magia” é um mantra. ‘Magia’ está dizendo o quê? “Pega esse poder todo que você está distribuindo, jogando afora e pegue ele para você! Use ele para você!” Acho que isso resume algo que eu venho falando em entrevistas há um tempo, antes desse disco, que é sobre o conceito de empoderamento para mim. Todo mundo querendo que eu dissesse uma frase pronta sobre isso, e eu não acredito no empoderamento, que ele seja só social. Acredito que, realmente, as pessoas precisam de dinheiro para comer, mas de onde vem as coisas que a gente precisa? Não é do dinheiro. Existe todo um teatro criado para a gente acreditar que tudo que a gente precisa está do lado de fora. Então a gente vai votando mal, dando poder para pessoas que não têm nada a ver. Pega esse poder todo e usa ele para você. É de pessoas realmente empoderadas que a gente faz um coletivo forte.
Há participações de Rico Dalasam e Arthur Verocai. Já eram feats que você buscava ou as canções pediram por eles?
“Ânimus x Anima” pediu que fosse Arthur Verocai. Eu fiz a música, veio o arranjo, já veio aquele final. Eu precisava de alguém que escrevesse algo incrível, apoteótico para o final. O Rico Dalasam é uma paixão antiga, ele é um dos rappers mais geniais que a gente tem no Brasil. A escrita dele é muito específica, muito chique. Quando ele chega com essa rima “não se destrua, descanse”. Nosso melhor nunca foi na agonia. Vamos pegar tudo que a gente é, tudo que a gente tem, vamos recobrar a nossa memória e assumir nossa parada. Amarrou demais. Muito feliz com esses dois feats. De ter conseguido trazer o maestro para dentro do disco, conversar com ele, falar o que queria. Foi bem importante, bem especial. Para mim, foi uma glória. Eu sempre fico com uma sensação de: “será que esse é meu máximo?”. Com certeza, esse é um momento assim… de máximo! De poder trabalhar, colaborar com artistas como esses. Tem hora que eu nem acredito.
Como você define a sonoridade de Em Nome da Estrela?
Cara, nunca consigo definir nada. Aliás, ontem eu estava até pensando sobre isso. Eu fui numa festa ontem, numa festa de moda. E eu sempre fui meio do mundo da moda. Desde que eu me mudei para São Paulo, sempre circulei nesse rolê, fiquei um tempo afastada, e agora eu voltei. Vi como o cenário mudou, os personagens mudaram. Tudo aquilo que sempre foi considerado marginal, hoje em dia é o grande streaming da parada. Tipo modelos transgênero, coisas maravilhosas, belíssimas. A vida dizendo: “eu quero que seja assim, eu vou entortar a cabeça de vocês para aprenderem o que é o amor, vou sempre dificultar para vocês compreenderem que precisam se amar de verdade”. Olhando para isso, fiquei pensando como é muito difícil definir as pessoas. É deselegante, e grosseiro! Você precisa realmente chegar, perceber. O sentir nunca foi tão importante. Isso que proponho no meu trabalho, uma coisa mais sensorial com os instrumentais longos. Um trabalho de banda que já estava trabalhando nos shows do outro disco e deixei fluir. Tem muito tempo que a galera quer que eu diga o que é a minha música, o que é o meu som. Eu realmente não sei. É música, livre experimentação. Tem muito espaço para o virtuosismo no meu trabalho porque eu acho que essa ideia do virtuosismo, tem a ver com uma busca pelo meu próprio virtuosismo. E todas as pessoas com quem eu convivo, que trabalham comigo, que tocam comigo, também estão um pouco nessa busca, de melhorar algo em si, de melhorar algo no próprio fazer artístico. Então, esse virtuosismo está muito mais presente. Ele veio no primeiro disco e agora não tenho vergonha em dizer que meu trabalho é virtuoso.
O aspecto sensorial é palpável. De que maneiras isso foi premeditado?
A sensorialidade, a universalidade… O disco pode tocar em qualquer lugar do planeta e traz elementos que estão ancorados a determinadas linguagens, como na percussão da Bahia, mas não só. Mistura em muitos momentos. Você se perde. Você não sabe onde está. A fusão desses toques com camadas e mais camadas de sintetizadores. A pessoa que ouvir que vai me dizer. Eu não sei de nada [risos]. É livre. Minha música é livre. Ela anseia pela liberdade. Acho que esse é o meu desejo como pessoa, ser alguém cada vez mais livre, mais à vontade comigo mesma, mais apropriada de mim mesma, mesmo que o mundo e o Brasil estejam ao contrário disso. No meu terreiro, quem manda sou eu, quem apita no meu terreiro sou eu. Vou trabalhar por essa liberdade, pelo auto amor, pela autocompaixão, autoestima. Para dar sentido à minha vida. Estou muito devota dessas ideias agora. E acho que consegui expressar isso minimamente no disco.
Como o título do disco chegou para você?
Numa meditação. Sei dar nome para as coisas de todo mundo. Minhas amigas precisam criar uma marca, vou lá, dou nome. Cachorrinho. Gatinho. Quando é comigo, sofro demais para dar nome, tenho muita dificuldade de taxar uma coisa que seja minha. Sempre quero deixar minhas coisas livres, para que elas sejam o que elas quiserem ser. Fui no meu terreiro um dia, estava lá trabalhando, o meu Pai de Santo, Pai Rodney, falou: “olha, Exu mandou te dizer que ele já te deu o nome do disco, que é para você aceitar”. Fiquei assim: “nossa, gente, qual é o nome?”. Um dia fui meditar, estava mó relax, meditei por um tempão. E veio: Em Nome da Estrela. Fiquei pensando nisso. E tinha tudo a ver com o disco. Tinha a ver com “Interestelar”, tinha a ver com “Ancestral Infinito”. Meu nome é Xênia Erica Estrela França. Ganhei esse nome da ancestralidade cósmica. Dessa explosão estelar, viagens materiais, químicas, até chegar na Terra, e colapsar minha família, que me deu esse nome. Foi um jeito de homenagear essa ancestralidade material e imaterial infinita. Fez sentido. Para mim, pelo menos.
Você fez shows de lançamento em São Paulo e Salvador. Qual é a sensação de apresentar as músicas ao vivo?
Nossa, no primeiro dia: vulcão em erupção. Foi muito emocionante, não imaginava, realmente. Teve um momento que achava que não ia rolar mais, tive a sensação que minha carreira tinha acabado, que não fazia mais sentido. Vivi momentos de tristezas, de dúvidas profundas. E o sentimento agora é de alegria, de transcendência. Coloquei isso na capa do disco, a ideia das mãos douradas. Depois de vir das profundezas, há a representação da experiência de Midas, do mito de Midas, trazendo ouro. Reconhecendo esse brilho e colocando ele em prática. Quero muito tocar, cada vez mais, para todo mundo. Fazer um monte de shows, um monte de coisa legal. Estou com o meu coração cheio de amor em forma de música para poder compartilhar com as pessoas. Foi realmente uma hora de amor nesses shows, de realização. Quase como se estivesse nascendo de novo.