Tudo sobre 1971 – Como era a música brasileira há 50 anos?

Sucessos do rádio e obras hoje cultuadas marcaram a MPB no começo da década de 1970. Entenda o que as pessoas realmente ouviam:

Texto Lucas Vieira
Arte Yasmin Kalaf

O ano de 1971 marcou a música brasileira para sempre. Foi o momento de criação do ambiente em que tornaram possível as revoluções que viriam a seguir: 1972 foi o ano da explosão de álbuns clássicos, e 1973 foi o momento de reinvenção. Com muitas novidades e experimentações sonoras, além de questionamento dos costumes e uma intensa produção artística, o segundo ano da década de 1970 trouxe produções marcantes para a MPB. Saiba mais no texto abaixo sobre esse cenário e as principais obras da música brasileira lançadas em 1971! 

O que as pessoas realmente ouviam

Grande parte dos álbuns elencados neste texto são considerados clássicos. Porém, além do valor cultural, alguns desses LPs são vendidos por valores altíssimos, se tornaram raros por terem sido pouco vendidos na época e continuaram com pouca oferta no mercado. 

Comprar discos no Brasil no começo da década de 1970 não era tão barato como seria na década seguinte. Assim, o rádio era a principal forma do público consumir música. Nas estações, artistas com obras populares conversavam tanto com as camadas sociais menos favorecidas, quanto com as elites, além de terem canções em trilhas sonoras de novelas. 

Nas rádios, entre clássicos da música internacional como “It’s Too Late” (Carole King) e “Have You Ever Seen The Rain” (Creedence Clearwater Revival), as vozes femininas e os artistas classificados como “bregas” estavam entre os mais ouvidos pelo público que sintonizava as AM e FM nos radinhos de pilha.

Na seleção de cantoras de destaque: Clara Nunes (“Ê Baiana”), Claudia Barroso (“Quem Mandou Você Errar”) e Carmen Silva (“Adeus Solidão”). Elas estavam entre as mais conhecidas, com trabalhos caracterizados por sambas, baladas, assinaturas vocais potentes e letras românticas. Junto a elas, Elis Regina lançou em compacto o estrondoso sucesso “Casa No Campo” e no LP Ela, apresentou as canções “Madalena”, “Cinema Olympia” e “Estrada do Sol”.

Márcio Greyck (“É Impossível Acreditar Que Perdi Você”), Waldick Soriano (“Carta de Amor”) e Altemar Dutra (“Bloco da Solidão”) estão entre os cantores chamados de “bregas” pelas elites, mas que eram sucesso de público. Tido como inocentes e autores de baladas exageradamente românticas, criticavam as tradições e a “moral e os bons costumes” com letras ambíguas e sonoridade influenciada pelo folk estadunidense. Um dos principais exemplos foi Odair José, autor de canções como “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, sobre um homem que se apaixona por uma prostituta, e “Uma Vida Só”, que falava sobre a pílula anticoncepcional.

Enquanto o posicionamento político desses artistas era questionado, Chico Buarque, um dos principais opositores da ditadura militar, atingiu grande sucesso com as faixas densas de seu disco Construção. As músicas “Cotidiano”, “Deus Lhe Pague”, e a faixa título ficaram entre as 100 músicas mais executadas nas rádios brasileiras em 1971.

O ano marcou também uma grande virada na carreira de Roberto Carlos, um dos maiores vendedores de discos. Seu álbum homônimo lançado naquele ano o colocou em primeiro lugar nas rádios com a canção “Detalhes”, um hit sentimental que embalou muitos romances. Afastando-se da imagem de ídolo adolescente criada na Jovem Guarda, o artista intensificou em sua obra a influência da soul music e trouxe letras marcantes, criando um LP recheado de sucessos.

Tropicalistas exilados

O álbum trouxe “Todos Estão Surdos” e “Amada, Amante”, e também conta com a presença de “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos”. A canção foi feita em homenagem a Caetano Veloso, que foi visitado por Roberto Carlos quando estava exilado em Londres, após ser preso pela ditadura militar.

Ao lado de Gilberto Gil, Caetano foi preso em 27 de dezembro de 1968, sob uma infundada suspeita de que a dupla havia desrespeitado a bandeira nacional. Em fevereiro de 1969, na quarta-feira de cinzas, os tropicalistas foram liberados para prisão domiciliar e em julho partiram para o exílio na europa.

Junto a Erasmo, Roberto compôs “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” retratando a tristeza de Caetano ao ser obrigado a viver fora de seu país. A melancolia também foi registrada nas sete faixas do álbum que o cantor baiano lançou em 1971. No repertório, pede notícias para a irmã (“Maria Bethania”), declama sua insatisfação e a saudade de sua terra (“If You Hold A Stone”) e ressignifica a canção fundamental da música brasileira “Asa Branca”.

Gilberto Gil, apesar da melancolia, estava curtindo as novas experiências que a estadia forçada na Inglaterra proporcionou. Passou a tocar guitarra, frequentou clubes assistindo shows de artistas como Rod Stewart e John McLaughlin e também gravou um álbum em inglês. Canções como “One O’Clock Last Morning 20th April 1970” e “Mamma” em contraste com “Crazy Pop Rock” (parceria com Jorge Mautner) revelavam a oscilação entre tristeza e agitação do cantor baiano.

Gal a todo vapor

Ainda sobre o álbum de Roberto Carlos, nele está presente “Como Dois e Dois”, composição de Caetano Veloso, que também foi um dos momentos-chaves de um dos espetáculos mais marcantes de 1971: o “Fa-Tal: Gal A Todo Vapor”.

Estrelado por Gal Costa, o show registrado em LP duplo foi um marco. Além de ter sido um ponto de encontro para hippies, amantes de música brasileira e rock n’ roll, o espetáculo contou com as músicas “Dê Um Rolê”, “Vapor Barato” e “Pérola Negra”, revelando o talento de Luiz Melodia.

A banda de apoio reuniu alguns dos maiores instrumentistas do momento: Novelli (baixo), Lanny Gordin (guitarra), e os integrantes dos Novos Baianos – Baixinho (percussão) e Jorginho Gomes (bateria), além de Pepeu, que substituiu o guitarrista original durante a turnê e participou da gravação de algumas faixas.

Em 1971, Lanny Gordin foi um dos guitarristas mais requisitados da MPB. Conhecido a partir de suas gravações nos discos da Tropicália, o músico participou também de “Mudei de Ideia” (LP de estreia da dupla Antonio Carlos e Jocafi, que emplacou naquele ano o samba “Você Abusou”), do compacto de Tim Maia com as músicas “Chocolate” e “Paz” e do álbum “Carlos, Erasmo”, um dos álbuns mais cultuados da carreira do cantor, que também teve a participação do maestro Arthur Verocai e de membros dos Mutantes.

Negro É Lindo

No ano internacional da da Luta contra o Racismo e a Discriminação Racial pela ONU, a música negra brasileira trilhou passos importantes. Além de “Festa Para Um Rei Negro”, na voz de Jair Rodrigues, ter sido uma das faixas mais tocadas no rádio, chegava às lojas em 1971 o primeiro LP de Tony Tornado. O artista fazia sucesso com a música “BR-3”, vencedora da etapa brasileira do V Festival Internacional da Canção. Tim Maia, que havia obtido êxito com seu disco de estreia em 1970, emplacou os novos hits “A Festa dos Santos Reis”, “Você” e “Não Quero Dinheiro”.

Outro soulman que despontou em 1971 foi Cassiano, compositor que ajudou a projetar Tim Maia com as composições “Primavera” e “Eu Amo Você”, feitas em parceria com Silvio Rochael. Em seu LP Imagem e Som, o artista misturou baladas e bossas com o funk e soul, reforçado pelo coro do conjunto Os Diagonais, do qual foi integrante, e das cantoras Eloá e Jane (da dupla com Herondy).

Reunindo um time que incluiu Rubão Sabino (baixo), Oberdan Magalhães (sax e flauta), Serginho do Trombone (trombone) e Luiz Carlos Batera (bateria), o pianista Dom Salvador montou o grupo Abolição, com quem gravou um único álbum, Som, Sangue e Raça, em que misturou o jazz com a black music, criando uma obra refinada que seria uma das bases do movimento Black Rio, forte expressão da cultura negra na década de 1970.

Ressaltando a importância da cultura, da beleza, e da qualidade dos artistas negros, Jorge Ben lançou junto do Trio Mocotó o álbum “Negro É Lindo”, que misturou o suingue do seu violão com os arranjos de Arthur Verocai, produzindo músicas de discurso e musicalidade importantíssimas, como “É Proibido Pisar Na Grama”, “Cassius Marcelus Clay” e “Zula”.

O rock e o underground (ou “udigrudi?”)

Fora das rádios, dos principais programas de TV e selos das gravadoras, os artistas ligados ao rock gravaram obras que conquistaram os jovens antenados do Brasil. Mais presentes no mercado por sua participação na Tropicália, Os Mutantes lançaram Jardim Elétrico, disco em que romperam com a estética do movimento, e intensificaram em seu som irreverente e eclético. Gravaram, no mesmo álbum, “Benvinda” (homenagem a Tim Maia), as pedradas “Saravá” e “Top Top” e a versão bossa-nova de “Baby”, feita em inglês para o LP “Tecnicolor”, lançado apenas em 1999.

Em compacto, O Terço apresentou seu rock progressivo com destaque para os arranjos vocais e orquestrações, trazendo instrumentos curiosos como a tritarra (guitarra de três braços) e o violoncelo elétrico, em disco de cinco faixas que incluiu trecho de uma peça clássica de Bach. Com “No Fim do Juízo”, os Novos Baianos mostraram a transição de “É Ferro na Boneca” para “Acabou Chorare”. Nas quatro faixas do EP, incluíram flautas, sanfona, sopros e diversos ritmos regionais com o rock endossado pelo grupo instrumental A Côr do Som. Nas palavras da época: um desbunde!

Outra pérola lançada em 1971 foi A Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, álbum coletivo dos artistas Edy Star, Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Raul Seixas. Com ares circenses, o LP que “não queria dizer nada”, trouxe várias críticas aos padrões da sociedade e misturou rock com baião, samba romântico e choro, finalizando com a sonora descarga de uma privada.

Localizado em um ponto de transição entre duas décadas tão importantes para a música brasileira, 1971 foi o ano de grande obras e momentos marcantes, com resultados definidores para a produção fonográfica da década de 1970.

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