Afiada e combativa, a artista comenta a criação de “FÚRIA”, seu álbum de estreia, e divide os próximos passos
Texto Daniela de Jesus
Foto João Arraes e Gabriel Renné
Como você lida com a raiva? Grita, reprime, chora ou ignora? Esse sentimento, que pode ser associado a sensações ruins e desconfortáveis, é o que move Urias, uberlandense que, aos 28 anos, encontrou na raiva acumulada impulso para seguir em frente, se expressar e conseguir o que deseja. Como resultado, a artista lançou o álbum “FÚRIA” em janeiro deste ano, onde destrincha as diferentes formas que os sentimentos de raiva, ira e insatisfação podem ser tratados.
Com referências da cultura do ballroom, dos beats eletrônicos e do drill, Urias apresenta músicas que, em sua maioria, destacam o escudo construído pelo sentimento de fúria como uma maneira de se fazer forte e imbatível. Em faixas como “Racha” e “Peligrosa” a artista ressalta sua intensidade ao cantar trechos como “Mas se tu cruzar meu caminho / Eu passo por cima, vou te atropelar” e “Não mexe com a gata que a frequência é muito alta / A mulher é afiada, vai te derrubar do nada”.
Enquanto em “Foi Mal” e “Tanto Faz” Urias se mostra vulnerável, como no trecho “Tentando o meu melhor eu te mostrei o pior de mim”, traçando a complexidade da guarda que foi levantada como um mecanismo de defesa e como esse sentimento pode ser controverso. “Eu ainda não achei como me desarmar, é meio cansativo, mas eu não sei ser de outro jeito”, confessa a artista.
Encontro Urias em uma chamada de vídeo logo após sua turnê europeia, realizada em junho. No começo, a artista conta com falas mais introspectivas e disfarça a potência explosiva que é cantada em seu disco e que é vista nos palcos. Com nome confirmado em diversos festivais de música como Sarará, em Belo Horizonte, no Primavera Sound São Paulo, e no CoMa em Brasília, Urias conta que a turnê na gringa, onde a artista abriu os shows da turnê “I Am Pabllo Global Tour” ,de Pabllo Vittar, a surpreendeu positivamente e expandiu seus horizontes. “Eu nunca nem tinha sonhado com uma turnê na Europa, mas foi a realização de muitos sonhos e isso me deixou pensando sobre onde é possível ir agora”, diz a artista após as apresentações na Irlanda, Itália, Reino Unido, França e Holanda.
Em maio, dias antes de ir para o outro continente, Urias disponibilizou o EP “Her Mind”, a primeira parte do seu próximo álbum, que será dividido em três EPs. Neste primeiro momento, a cantora traz quatro faixas com letras em inglês, português e espanhol, ao passo que apresenta experimentações musicais com influências do PC Music e do hyperpop. “Cada uma vai ter a sua estética. E tudo no final vai se juntar porque o babado aqui é conceito, a gente entrega conceito”, adianta. Em entrevista à Revista Balaclava, Urias contou como transformou a sua insatisfação e fúria em um combustível, quais são as consequências disso e o que podemos esperar dos seus próximos passos.
Para começar, você acabou de voltar da sua Euro Tour. Como foi a experiência de fazer uma turnê internacional?
Foi muito louco! Eu não esperava muita coisa que aconteceu, não esperava a recepção que a gente teve com o público. Ninguém sabe quem eu sou lá, então eu vou cantar e o povo vai ficar olhando. Mas não, muita gente sabia e eu fiquei muito impressionada com isso. Ah, e uma turnê na Europa, né? Eu nunca nem tinha sonhado com isso para você ter uma noção. Mas foi uma realização de muitos sonhos, isso me deixou muito pensando sobre onde é possível ir agora. Quando você chega em um lugar que você não esperava, você começa a questionar onde é a linha do impossível e para onde mais eu posso ir.
Agora vamos voltar no começo do ano quando saiu “FÚRIA”. O nome do disco já entrega sobre o que você vai falar, sobre esse sentimento de raiva e você mostra como ele pode servir como combustível. Como você aprendeu a lidar com a sua raiva?
Ai, menina (risos)! Como explicar? Com as situações do dia a dia, que eu tinha e que eu tenho que passar, porque eu ainda passo por elas até hoje. Acho que você como uma mulher preta vai entender que a gente passa umas raivas que a gente não pode fazer nada, é uma coisa muito sistêmica, que não tem nem como você apontar para a cara do agressor e falar: “A culpa é sua”. Foi bem isso, da necessidade de colocar essa raiva para fora de um jeito que saísse de mim e não necessariamente acertasse alguém específico. Foi muito importante para mim ter decidido falar sobre a raiva desse jeito, como um jeito de tirar ela de mim porque estava me fazendo mal. Eu queria que o álbum tivesse um tema central para eu poder discorrer sobre ele em vários lugares, em várias facetas do tema, que isso abrangesse várias partes do que eu sou e do que eu faço.
Tem um trecho que me chama atenção em “Pode Mandar” que é “tenho uma raiva que me faz seguir”, onde fica claro que a raiva foi usada como um motor. Mas isso também pode ser considerado como mecanismo de defesa ou alguma armadura?
Com toda certeza, quando você está em um lugar em que você entende que não é bem-vinda, no sentido de que não tem muitas de você ali, você sente que as pessoas entendem que se elas falarem alguma coisa errada você vai ficar puta e com isso as pessoas não vão chegar perto de você. Então, essa raiva também é um escudo. Eu sou a favor de usar a raiva em todos os aspectos que ela possa te oferecer algo positivo, principalmente como motor. Para mim funciona muito como motor em várias questões da minha vida, de ter raiva de alguma coisa que aconteceu e falar que eu nunca mais vou deixar isso acontecer. A raiva te faz movimentar, só é preciso saber para que lado você vai se movimentar, para não prejudicar nem você e nem ninguém.
E quando que você acha que é o momento de desarmar e se mostrar mais vulnerável?
Ainda não descobri. Eu ainda não descobri até hoje. Eu estou sempre armada.
Como é a sensação de se sentir que está carregando esse peso nas costas?
É meio cansativo, mas você se acostuma também. Você aprende a usar isso ao seu favor. Eu ainda não achei como me desarmar, é meio cansativo, mas eu não sei ser de outro jeito.
Uma coisa que eu quero te perguntar é sobre sua autoestima. Tanto nas letras, quanto na sua postura nas apresentações, você se impõe e é notada. Tanto que em “Cadela” você canta: “Na roda eu tenho nome/Fiz meu lugar”. Como foi esse processo?
Meio que vai acontecendo. Você vai entendendo que muitas vezes, dado aos seus recortes, as pessoas não vão te levar a sério. Principalmente no meu recorte, em que é permitido apenas às pessoas sentirem dó de um passado sofrido ou rirem por eu ser do jeito que eu sou. Eu sempre tive o pensamento de querer ser levada a sério, então me coloco nesse lugar. Eu não dou espaço para me desestabilizar nesse sentido, que faz parte daquela armadura que estávamos falando. Mas enquanto está acontecendo eu não consigo pensar que estou sendo confiante. Eu sei que preciso agir daquela forma para ser levada a sério.
Outro trecho que me chama muito atenção é de “É Tudo Meu” na parte que você diz: “Eu serei tantas/ Que eles nunca saberão quais sou/ Quais finjo ser”. Quais você está sendo, quais você já foi e quais você ainda quer ser?
Eu estou sendo… meu Deus (risos), tudo, tudo! É porque nesse trecho eu falo de duas coletividades, no sentido de que eu serei tantas porque não estou sozinha, eu sou todas elas e elas são todas eu, existem tantas da gente, que eu serei muitas. Onde você ver uma mulher travesti, que é preta, você estará me vendo, eu serei muitas. Mas também no sentido de que eu serei tantas versões de mim que vocês nunca vão conseguir acompanhar. Agora que você fez essa pergunta, eu parei para pensar que eu ainda estou descobrindo todas aquelas que eu posso ser porque estou me descobrindo como pessoa pós vida artística, onde muita coisa muda e tantas coisas se misturam. Eu ainda estou sendo várias e isso está sendo um processo divertido, mas confuso. Às vezes eu dissocio e não sou nenhuma (risos).
Como foi o processo de criação estética do álbum? Você apostou no preto e branco e também em bastantes acessórios tanto nas fotos quanto nos clipes. Como rolou isso?
Em relação ao preto e branco, eu queria muito deixar em aberto para que as pessoas imaginassem muitas coisas, então eu não queria determinar cor para nada. Queria fazer uma coisa que desse mais vontade de encostar, que as pessoas prestassem atenção nas texturas e preenchessem com as cores que estão na cabeça delas. Quando eu decidi, era mais por conta dessa questão das texturas e do mistério. Para mim, o mistério ia fazer com que as pessoas se interessassem visualmente.
E um pouco antes de ir para Europa você soltou o EP “Her Mind”. Como foi o processo de criação dele, eram músicas que não entraram na “FÚRIA”?
Não teve nada do álbum que entrou para o EP. Quando a gente estava fazendo o álbum, já tínhamos em mente que iríamos lançar algo para fora, queria apresentar o meu jeitinho de ser brasileira para a gringa. Nisso, surgiu a tour e a gente decidiu adiantar esse plano. Voltei a trabalhar com cor e já lancei logo um contraste. Então o “Her Mind” vai ser dividido em três partes, essa foi a primeira, e cada uma vai ter sua estética. E tudo no final vai se juntar porque o babado aqui é conceito, a gente entrega conceito. Estou trabalhando nas outras partes mas ainda não tem uma previsão de lançamento.