Rituais de cura

O trio Tuyo não quer fugir da realidade.
É no contato radical com ela que a banda rasga
o seu coração e se transforma todos os dias

Texto Isabella Purkote Foto Karla Bright Assistência Mylena Saza
Beleza 
Laura la Laina  Looks Gato Bravo Vintage e AHLMA 
Direção de Arte 
Thais Jacoponi

(Essa matéria foi publicada originalmente na quinta edição impressa da Revista Balaclava, lançada em novembro de 2019).

Em meados de janeiro de 2019, um amigo me convidou para ir ao show de uma banda formada só por mulheres, a Mulamba. O espetáculo começou com a canção “Esses Nadas “e, por não conhecer cada uma das integrantes, imaginei que a moça que estava cantando ali com sua voz poderosa pertencia ao grupo. Estava enganada. A faixa em questão tratava-se de uma colaboração com Lio Soares, do Tuyo – banda esta que fui assistir ao vivo logo no domingo seguinte. Composta por Jean Machado e as irmãs Lio e Lay Soares, o trio dá as mãos ao hip hop e ao folk para criar um universo complexo. Um caleidoscópio sonoro com uma agenda prevista: enfrentar o trabalho duro da reflexão. Segundo a própria banda: “olhar para dentro”.

Foi nesse exercício de autoconhecimento que o grupo deu à luz ao seu primeiro EP, em 2017. Intitulado Pra Doer, o registro faz jus ao seu nome e é capaz de arrancar algumas lágrimas de quem se propõe a ouvi-lo. Funciona como o início de uma jornadaque nos leva até o LP Pra Curar (2018). Os dois trabalhos entrelaçam histórias com as delícias e agruras da aventura que é estar aberto para amar, além de outras questões que abarcam os aprendizados do jovem adulto em tempos líquidos. Com isso, a banda se mostra atualmente como uma das promessas da música brasileira alternativa firmando-se no contraste entre sons orgânicos e sintetizadores. De coração escancaradopara o mundo, eles tornam-se, cada vez mais, eles mesmos. Sentem, choram e, no embalo do desabafo, conversaram com a Revista Balaclava.

Quais foram as inspirações para compor Pra Doer?

JEAN A gente buscou percorrer alguns caminhos que estamos trilhando hoje. Trabalhávamos com o que tínhamos e com o que achávamos interessante. Assim, fizemos quatro músicas que se conversam, mas que acreditamos serem diferentes entre si.

LIO Eu tenho muito carinho pelo Pra Doer. Lembro que, quando ouvimos pela primeira vez, eu chorei. Nunca tinha feito uma coisa tão bem masterizada. A gente estava muito apegada à paleta do drama. Era a época em que eu era a louca do Crônica de uma morte anunciada (romance de Gabriel García Márquez, 1981). Sinto que virou um bom mergulho no nosso universo.

Na opinião de vocês, existe o momento em que a dor passa do limite e se torna doença?

JEAN Falar de suicídio se você não estuda a fundo a questão pode ser até irresponsável. Então, acho que falamos do que sentimos como percebemos o mundo a nossa volta. Queremos olhar para dentro e isso faz toda a diferença na nossa vida. Se conseguimos, de alguma forma, fazer com que alguém também consiga olhar para dentro de si, porra ficamos felizes, com certeza. Mas, nada é totalmente resolutivo. Precisamos entender melhor os problemas da nossa geração e, talvez, a percepção e a honestidade sejam um caminho.

LIO: Acho que qualquer tabu gera um comportamento desenfreado. Quando não falamos sobre morte, sexo, dinheiro, a gente se perde quando tem que enfrentar essas questões na vida real. Tenho a sensação que não conseguimos lidar com o inexorável: o fim das coisas e entender que elas acabam – e o caráter cíclico disso. Sinto que é um jeito da gente tentar fugir da realidade, tentar sobreviver. Mas, quanto mais eu corro, mais isso me persegue. Para mim, é mais proveitoso olhar no espelho e dar nome para essas coisas que enxergo do que passar maquiagem sobre elas. Talvez, esse processo seja o monotema da banda. Olhar o sentimento com franqueza e não tentar manobrá-lo quando ele chega.

JEAN: O fim é sempre iminente. A Tuyo, um dia, também vai acabar. Cabe a nós vivermos esse momento do jeito mais verdadeiro possível. Estar presente com saúde emocional para aproveitar o que está acontecendo agora.

LIO: Não que as fugas são desonestas, é só outra maneira de ver. No fim das contas, as pessoas continuam se matando, estuprando, machucando… Talvez essa seja a exploração de outra alternativa: encarar essa bosta e falar francamente sobre elas. Não é como se a saída para o suicídio fosse estar feliz o tempo todo. Isso não existe. A gente é uma paleta cheia de nuances. Sentir dor faz parte disso e pode ser bom. Você cresce, reflete… E mais: não precisa fugir porque assim como a felicidade acaba, a dor também. Não acho que a Tuyo seja uma banda de autoajuda, que todo mundo tem que estar bem, sei lá. O que rola é uma identificação. Se a gente fala no microfone que tá uma merda, as pessoas se sentem mais livres para encararem isso também.

JEAN: Curioso é que tá todo mundo fodido também.

“eu sinto que o racismo não é um problema meu, é um problema de branquitude. E vocês que se virem para conversar sobre isso. Enquanto isso, eu vou aparecer no máximo de revista que eu puder”

Como vocês sentem a falta de representatividade no cenário musical brasileiro?

LIO: O foda é que representatividade virou uma palavrinha que playboy branco inventou para a gente ficar quieto. O cara coloca um preto para as 100 pessoas de uma equipe. Um gordo, um gay, e acha que tá tudo certo. Eu quero proporcionalidade. Se eu faço parte da maioria da população, por que eu sou menos em todos os lugares? A Tuyo sempre faz as coisas com a foto da nossa cara que é para todo mundo se sentir encorajado. Que a gente não é “pretinho do samba”, que não tem flor no cabelo e “ai, que linda sua cultura”. Pouquíssimas pessoas no nosso cenário estão realmente incomodadas com isso e fazem o trabalho de realmente pesquisar até descobrir um monte de banda que existe por aí e está fora do radar. A gente é piá de prédio, três “microplayboyzinhos”. Nossos pais se fuderam para conseguir as coisas para a gente, mas a gente não é periférico. A gente conseguiu o que conseguiu porque a manifestação do racismo no Brasil é tão porca que se dá pelo colorismo. É tão nojento… É perceptível, sabe? Ao mesmo tempo, eu posso falar com essa raiva de um sistema, mas eu não posso apontar dedo para ninguém, porque eu quero a minha bandinha, ó, decolando! E ninguém está prontopara se responsabilizar. As pessoas ficam chateadas, se sentem culpadas, aí ignoram isso e fingem que estão fazendo algo. É um inferno.
Mas, eu sinto que o racismo não é um problema meu, é um problema de branquitude. E vocês que se virem para conversar sobre isso. Enquanto isso, eu vou aparecer no máximo de revista que eu puder. Para que quem seja parecido comigo se sinta encorajado e entenda que é possível ocupar esses espaços. Acho que é daí que vem muito isso das pessoas ficarem chamando a gente de “afrofuturista” porque a gente ocupa lugares que são majoritariamente brancos… E, sei lá, não é uma coisa que nos preocupa o tempo todo. Não é “Ah, precisamos fazer música para combater o racismo”. Eu quero ficar vivo, eu quero ficar bem, comprar uma casa. Só isso já é um baita estímulo. E é muito legal saber que nossa presença no palco provoca isso, é magnético e atrai as pessoas parecidas com a gente. Não sou militante, sou preta!

Depois da dor, depois da cura… Qual o próximo passo?

LIO Várias possibilidades… Já falaram que a gente vai fazer o “Pra Foder”, mas eu não sei. A gente compõe individualmente,então falo por mim: minha cabeça está centrada e entender o que é a realidade. Eu sei que vou morrer e que não tenho a liberdade social de decidir como. Vou ter que esperar o acaso decidir para mim. Descobri que as coisas que eu achava que eram eternas têm um fim. E agora? O que eu faço com isso?

JEAN Eu ia falar a mesma coisa, o sentimento
é o mesmo. Como lidar com o caos do que a gente encontra dentro da gente?

LAY Não faço ideia, silêncio total. A gente sempre fala que o disco não tem função. Temos que esperar e ver o que tudo isso vai virar e, só então, dar nome para as coisas, como tudo na vida.

LIO Eu imagino que, se tudo o que tiver aqui dentro conseguir sair, vai ser um disco menos etéreo, mais concreto. Talvez, mais duro, menos denso. Não sei se a gente deu uma folga para a Lay ou se é uma prisão porque o Pra Doer e o Pra Curar têm muitas canções dela. Então, a gente falou que queria escrever esse disco. Acho que a Lay é mais cronista nas composições e eu e o Jean somos mais metafóricos.

JEAN Sei lá o que vai acontecer. No fim, quando a gente for sentar para compor, tudo isso pode cair por terra.

LIO Eu estou escrevendo como uma maluca.

JEAN Esse ano foi muito louco. A gente lançou em novembro e estamos conversando aqui, agora, sobre isso, sabe? Aconteceu muita coisa, estamos fudidos da cabeça, acho que esse disco vai refletir um pouco dessa fase.

LIO Vai ser a primeira vez que a gente vai fazer algum trabalho com recurso. A Natura tá dando a maior força e é massa poder contar com grana e atenção, né? É saber que o disco vai chegar em outros lugares porque vai ter gente cornetando por aí. É a primeira vez que a gente para e escreve juntos um álbum. Todas as músicas que o pessoal escuta hoje já estavam escritas, já existiam. A gente organizou no mesmo universo. É tudo muito novo. Deus que ajude. ☺

Gostou? Temos também essas outras matérias

Nos horizontes de Saskia

A artista recusa e atualiza o gentílico “gaúcha”, plana por rotas tortas e dá vida a uma nova persona artística no EP Quarta