MEL:
“Vivi um momento de morte e renascimento”

Após três anos de hiato, a artista dá os primeiros passos para uma carreira solo com o single solo, A Partir de Hoje.

Texto Mariana Marvão
Foto Fernanda Liberti

Mel Gonçalves de Oliveira – ou apenas MEL – teve o tempo necessário para se conhecer, entender o seu momento e entregar a sua melhor forma para o público. Depois de oito anos na Banda Uó, no começo de outubro de 2020, a cantora apresentou o primeiro single da sua carreira solo.

“A Partir de Hoje” tem produção de Felipe Cordeiro, e é uma composição de Gabriel Valentina, vocal coach e amigo. A letra surge do período de autoconhecimento e desabafos, onde o parceiro criativo acompanhou de perto suas tristezas e inseguranças. Em um exercício de observação, trouxe os versos que traduzem tão bem o que ela sentiu. MEL conta a seguir um pouco do que passou nesse período:

“O primeiro ano e meio foi de muita perturbação na cabeça, fiquei bastante confusa em relação ao que eu queria fazer, pensando em como me reconstruir. Diria que pra mim, os últimos dois anos foram decisivos na minha vida para poder construir e fazer o que eu faço hoje.

Foi um período bem complicado, bem arrastado. Mas de muito aprendizado, onde aprendi de fato a elaborar as coisas sozinha, a pesquisar, a me interessar, aprender os desdobramentos da produção e como é que se executa tudo. Acabou sendo um desafio, mas foi importante para mim. Aprendi realmente muita coisa, sobre tempo, sobre respeitar nossas limitações e fazer o nosso melhor. Tornar o trabalho, enquanto forma de arte, em algo mais do que só um trabalho: ser parte da nossa vida, ser algo que você quer escrever para além do mercado musical.

Então esse momento foi um momento de morte e renascimento, que é o que eu trouxe nas imagens da capa. Uma imagem sobre fertilidade, sobre um momento fértil meu, enraizada no solo e ao mesmo tempo frutificando, florescendo. Para mim, essa capa não é só a capa do single, ela é a capa de um novo período, de uma nova fase da minha vida, que espero que seja de paz, elegância, amor e tesão.”

“Uma imagem sobre fertilidade, sobre um momento fértil meu, enraizada no solo e ao mesmo tempo frutificando, florescendo”

VOO SOLO

A artista trabalhou ao lado de Davi Sabbag e Mateus Carrilho para criarem em conjunto a narrativa da Banda Uó. Durante 2010 a 2018, o trio abriu muitos caminhos para o cenário que vivemos hoje, se falarmos sobre representatividade LGBTQI+ na música.

Depois de construírem o legado do grupo, os três se viram prontos para contar mais sobre as suas vivências em carreiras individuais. Mel pretende entregar, em sua carreira solo, muito além do que o seu público espera, mas também algo que a mesma já queria fazer por ela há muito tempo:

“A gente trouxe outras narrativas para além das questões de identidade de gênero e de sexualidade. A gente trouxe arte, trouxe música e trouxe comunicação, então talvez por causa disso tenhamos criado uma rachadura neste sistema. E essa rachadura, como a própria Linn da Quebrada fala, possibilitou a entrada de outras artistas e outros artistas LGBTQI+ dentro desse role musical pop do nosso país.

Muitas vezes, a gente tem que guardar as nossas coisas e escutar o trabalho, que era o que eu não queria fazer durante essa carreira solo. Eu queria poder sincronizar a necessidade do público com as músicas que escuto, as coisas que quero apresentar. Ao mesmo tempo, também quis expressar a minha verdade, as minhas facetas e aquilo que eu acredito, trazer minha narrativa individual.

Quero ao mesmo tempo divertir as pessoas, entretê-las, e também me entreter. Queria chegar nesse ponto de equilíbrio entre essas coisas e é isso que uma carreira solo te dá, e uma banda não te dá. Que é a capacidade e escolha de fazer uma narrativa totalmente individual.”

APENAS MEL

A escolha da nova fase ser MEL em caixa alta não é mera coincidência. Vem com um propósito profundo, é o resultado de uma batalha que ela teve que viver para conseguir mudar o nome em sua certidão nascimento.

“Essa transição, a decisão de escolher o nome só MEL, para mim, foi por conta dessa fase, desse novo momento, onde realmente eu poderia ter o nome que é o meu de fato. Então quis afirmar isso, muito mais do que qualquer outro nome que eu tenha, seja sobrenome ou um apelido.

MEL veio para se afirmar enquanto um corpo necessário, um corpo que lutou muito, que sofreu demais, que passou por uma série de coisas, mas que permanece em pé e lutando pelo que acredita.

Só MEL vem com muita história, não é só mel. O nome vem com a minha história, trajetória, batalha, muita vitória também e muita luta ainda pela frente. Ele vem como a afirmação da minha mulheridade, mas não de uma mulheridade dada, cisgênera, e sim uma mulheridade conquistada, que tem que ser afirmada de uma forma positiva, sempre”.

ESPIRITUALIDADE REVISADA

Nascida e crescida dentro da igreja evangélica, a goiana começou expressar a sua arte nos cantos de louvor. Ao lado do tio, que também participava do coral da igreja, tornou aquele espaço um lugar de acolhimento e conforto. Tudo o que aconteceu dentro por lá, trouxe amadurecimento para o trabalho que viria a fazer no futuro, porque já tinha um ouvido mais atento para a própria voz.

“Quando era criança com meus 8 anos, já cantava com ele e lembro de quando aprendi, pela primeira vez, uma música que não era evangélica. A primeira música que aprendi foi aquela ‘É pau, é pedra é o fim do caminho’ (Águas de Março).

As coisas foram tomando proporções diferentes, até o momento onde estava aqui em São Paulo com a banda Uó e também afastada da igreja. Não cultuando esse Deus misógino, machista, transfóbico, homofóbico, que eles pregam dentro da igreja evangélica. Essa forma de Deus, que rejeita corpos como o meu. Eu já estava bem distante dessa religiosidade, mas ainda tinha fé dentro de mim.”

Sirvo a um Deus que não me julga, não julga a minha identidade de gênero mas, julga o meu caráter, o que sou por dentro e o que ofereço para o mundo.”

“Conheço a MC Tha, que foi a minha porta de entrada na umbanda, uma porta muito salvadora, que entrou na minha vida em um momento decisivo. Aconteceu um resgate da minha ancestralidade, onde conheci – e entendi – que a minha fé não precisa estar em um Deus, pode estar em vários. Ela pode estar na natureza, nos orixás, nos espíritos e nos ancestrais que nos regem. Isso libertou minha cabeça, me trouxe felicidade, axé e maturidade.

Trouxe outro significado para fé que eu tinha dentro de mim. Sirvo a um Deus que não me julga, não julga a minha identidade de gênero mas, julga o meu caráter, o que sou por dentro e o que ofereço para o mundo. É isso que eu acho importante.” ☺

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