Um dos trunfos do disco é a ressignificação da “sombra” como algo ruim. Em seu álbum de estreia, lançado em 2016, BK’ não renega o sombrio, mas muito pelo contrário: faz amizade com ele. Distante de qualquer babaquice bucólica, ele entende que compreender o que há nesse lado é essencial para usá-lo a seu favor.
Texto João Victor Medeiros
Foto Wilmore Oliveira
“Castelos & Ruínas” (2016) é discutivelmente o melhor disco de rap brasileiro da década passada. Lançado em um período no qual o gênero precisava desesperadamente de algo novo, o disco de estreia solo do BK’ rapidamente o estabeleceu como um dos melhores rappers da sua geração. Além de alavancar a Pirâmide Perdida a nível nacional, iniciou o movimento que abriu espaço para nomes como Djonga e Froid e, acima de tudo é, até hoje, um blueprint para diversos artistas que ousaram alcançar o patamar de composição e coesão deste disco, com raros sucessos.
Em um primeiro nível, o conceito do trabalho é simples e nítido: a dicotomia presente na vida do protagonista na história. O mal e o bem, o céu e o inferno, o amor e o ódio, o sucesso e o fracasso, o castelo e as ruínas, obviamente. Em uma audição mais atenta, o trabalho nos revela mais uma camada, que é de fato a força motriz das músicas: a busca pelo equilíbrio. BK’ tem uma teimosia quase homeostática na tentativa de achar o “caminho do meio”. A fim de buscar consciência sobre os seus extremos, investiga questões como os seus desejos mais passionais (“Amores, vícios e obsessões”), mas também passa por momentos introspectivos (“Caminhos”). “Eu nadei contra a maré, chão quente, fui a pé/ Meus passos descalços, eu sou Jó, sou Tomé”, descreve na faixa. Na filosófica sexta faixa do projeto, o rapper deixa nítida a sua reflexão em relação ao equilíbrio, fazendo da música um dos pilares para a compreensão das suas motivações.
Um dos trunfos de Castelos & Ruínas é a ressignificação da ideia de “sombra” como algo ruim. Em seu disco de estreia, o rapper não renega o sombrio, mas muito pelo contrário: faz amizade com ele. Distante de qualquer babaquice bucólica, ele entende que compreender o que há nesse lado é essencial para usá-lo a seu favor. Um bagulho meio Noob Saibot (Mortal Kombat), meio Shikamaru Nara (Naruto). Não à toa, o disco abre com o boom-bap reflexivo em“Sigo na Sombra”, em sequência a ótima mixtape do Nectar Gang. Em tom confessional (como grande maioria das músicas do disco), ele embala as rimas em um flow muito envolvente, que nos pega pelo ouvido e nos guia sobre a batida, como só os melhores flows fazem. “Foda-se o mundo, foda-se quem manda, foda-se meus inimigos/ Meu estoque de foda-se é infinito”. É divertido ouvir o BK’ rimando. Ainda contando com algumas cartas na manga, a faixa é uma ótima introdução a ele enquanto MC.
A ideia de equilíbrio não atinge o álbum apenas conceitualmente, mas também aparenta ser parte vital no processo de criação do rapper. Os sons não são maneiros só pelo flow, ou guiados exclusivamente por punchlines, muito menos chamativos por causa das batidas cativantes — tudo aqui é dosado na quantidade certa. E é isso que difere MC’s que fazem apenas boas rimas dos MC’s que fazem boas músicas. O rapper ouviu com atenção quando JAY-Z alfinetou Nas com a rima “you made it a hot line, I made it a hot song”. Além disso, BK’ não deixa faltar personalidade em nenhum momento, um “elemento X” para receita de um bom rapper.
Um dos atributos mais interessantes do carioca enquanto MC é o seu apreço pela técnica, sem dispensar o panorama geral que guia a sua abordagem dos temas. Destaque para trechos de rimas internas, como “vi-da que-tal me-dar o que-tá perdido por aí, é hora de nós qui-tarmos” e punchlines poderosas – “Quando criança eu sonhava em crescer e ter tudo de melhor dessa vida/ Hoje eu sou um homem crescido e a criança em mim ainda é viva”. Ou “o papo reto tem que ser dado, vejo irmãos sedados/ Querendo acertar o alvo sem dardos”. “Sangue nas pinturas pelos diamantes nas molduras” é uma síntese brilhante acerca de sacrifícios para alcançar o que se deseja e simplesmente explodiu minha mente na época. THAT’S COLD MUTHAFUCKIN BARS N**** YOU KNOW NOTHING ABOUT THAT!
Seja nos boom-baps nublados de El Lif e Goribeatzz, ou nos traps sombrios em negrito, no maior estilo Raider Klan e A$AP Mob, de JXNV$ e Sain, a produção de Castelos e Ruínas é coesa e colabora essencialmente para o clima do projeto. Em “Pirâmide”, JXNV$ exprime essa ideia na linguagem do beat, que se torna um sub-gênero para o outro, conservando o mesmo sample – que de Lonnie Smith a trilha sonora de Megaman, são de muito bom gosto e autenticidade.
Castelos e Ruínas se destaca pela quantidade de momentos (e rimas) memoráveis, resultado de BK’ saber dizer a coisa certa no momento certo. Na faixa que dá título ao álbum, há rimas inesquecíveis. “Nunca gostei da burguesia/ Mas quero que meu filho tenha o melhor da vida” e “Meu mano ficou privado uns 2 anos/ Sua mãe te visitando uns 2 anos/ Aquilo ali conserta alguém? Tá brincando…/ Entrou obedecendo e saiu mandando”. BK’ pensa sobre morte e finais em “Um dia de chuva qualquer” e está ativo e faminto em “O Próximo Nascer do Sol”, mas é na compreensão e aceitação da frequente coexistência desses momentos que reside o equilíbrio que interessa o artista. Mesmo com o tempo fechado, com guerras, com perdas, o sol vai estar lá. É o caminho do meio.