Celebrando a história das mulheres que abriram caminho para artistas como ela, a artista reverencia Alcione e fala sobre os próximos planos
Texto Isabela Yu
Foto Rodrigo de Carvalho
Os últimos anos foram surpreendentes para MC Tha. Após lançar o primeiro disco, Rito de Passá (2019), a cantora, compositora e funkeira paulista, rodou os palcos pelo país, e até mesmo mudou de cidade. Durante o tempo sem apresentações presenciais, criou um formato de live nas redes sociais para revisitar o seu repertório musical afetivo. Aos poucos, tudo foi se encaixando até apresentar o EP Meu Santo é Forte, lançado em junho do ano passado.
A princípio, a ideia da cantora era regravar a faixa “São Jorge”, do disco Emoções Reais, lançado por Alcione em 1990. Mas após se dedicar à pesquisa do repertório de canções afro religiosas da artista maranhense, ela decidiu incluir outras faixas de diferentes fases da Marrom: “Angolonã” (Morte de um Poeta, 1976), “Figa de Guiné” (Sabiá Marrom – O Samba Raro de Alcione, 1978), “Afreketê” (Nosso Nome Resistência, 1987), e “Corpo Fechado” (Uma nova paixão, 2005).
MC Tha realizou a direção artística ao lado do produtor musical Mahal Pita, que também faz parte da sua banda. “Mudou tudo: repertório, figurino, banda, cenografia, mapa de luz, é um show completo, algo que nunca tive”, conta. Para apresentar a nova fase, ela criou o “Clima Quente Show”, um vídeo com versões ao vivo das músicas, entrevista e mensagem dos fãs. O formato foi inspirado no programa “Alerta Geral”, apresentado por Alcione no final da década de 1970. A sua leitura da obra de desta artista tão importante é costurada por beats com instrumentos acústicos e pelas batidas do funk acompanhadas do tambor de terreiro. E ela está trabalhando para concretizar os planos para este ano: “Quero fechar as composições e começar a produção do meu segundo álbum. E receber um convite para apresentar um programa de calouros”, brinca. Na quarta-feira de cinzas, 22.2, bem na ressaca do carnaval, a artista apresentou mais um capítulo em seu repertório: “Coisas Bonitas”, novo single criado em colaboração com Mahal Pita.
Como foi o caminho até encontrar a sonoridade do EP Meu Santo é Forte?
O processo foi fluindo, as coisas foram acontecendo e se desdobrando naturalmente, regidas pela vontade de dar continuidade a essas canções. Além de reforçar a criação de um imaginário e uma pesquisa a partir da fusão do funk contemporâneo com os toques afro tradicionais de terreiro. Mahal Pita é estudioso e vive repetindo que tem formação em imagem, então produz a partir dela. Posso dizer que nesse sentido, a imagem MC Tha deu muito pano pra manga. O entendimento dele parte do seu pertencimento a Salvador, porque lá a percussão tem grande importância. Tanto eu, quanto ele, andamos até metade do caminho. As músicas nunca tiveram mais de uma versão, por exemplo. Ele teve muita sensibilidade porque soube respeitar o espírito de cada uma delas – como um encontro dos mais velhos com os mais novos – e não somente uma atualização das faixas para que soassem atuais.
Há o dedo de MU540 em “Afreketê”. O que você mais curte no trabalho dele?
Fizemos “Avisa Lá”, em Rito de Passá. Gosto de convidá-lo para participar das coisas comigo porque ele tem a cabeça muito aberta, além de ser muito talentoso, funkeiro e criativo. No novo projeto, o Mahal enviou um rascunho de como pensamos a música, essa coisa do funk mais macumbão, forte e ao mesmo tempo sensível, por causa da letra apaixonada. A faixa foi feita com recortes de beats e as guitarras do Chibatinha (Wallace Carvalho, guitarrista do ÀTTØØXXÁ). Um funk para Xangô dançar. Quando recebemos a faixa de volta, botamos ela tocando por cima de um vídeo de Xangô dançando em um barracão e o encanto estava feito.
Você estreou uma nova formação para os shows. Em que momento essa composição é criada?
Durante a pandemia, passei por várias mudanças, inclusive de estado. Estou morando um tempo em Salvador junto com Mahal. Nesse novo cenário, passamos a entender se era possível formar uma banda com músicos baianos e paulistas. A Rayra é a mais antiga da banda, ela é de Diadema, na grande São Paulo, e está comigo desde antes do lançamento do álbum, em 2019. Quando comecei a montar uma banda, a primeira coisa que pensei foi na percussão. Eu venho do funk, e a gente se guia principalmente pela base, pelos atabaques eletrônicos da MPC. No terreiro, quem comanda a gira é quem toca os tambores, então eu gosto de pensar em como o couro é tão importante nesses dois ambientes. Com a turnê Meu Santo é Forte, entendemos que íamos precisar de mais de uma pessoa na percussão, então por último entrou a Beatriz Senna, de Cachoeira, na Bahia. O Chibatinha é um grande músico, além de ter seu trabalho autoral muito bem firmado. Considero ele um dos melhores instrumentistas da nossa geração, muito dedicado e estudioso. Começamos a fazer algumas lives juntos durante a pandemia com a direção do Mahal, onde a gente criava uma atmosfera de boteco da MC Tha e o repertório era composto por sambas, pontos de terreiro e canções autorais tocadas no cavaquinho e violão. Depois que, timidamente, os shows começaram a voltar, o Chibatinha ficou com a gente. Conheci o Mahal Pita um pouco antes da pandemia, e desde então, demonstrei interesse em trabalhar com ele, entendi que ele seria a pessoa ideal para guiar os meus próximos trabalhos.
De quem são os áudios da caixa postal dos fãs no “Clima Quente Show”?
Pensei em criar um programa de TV para apresentar as músicas porque não fazia sentido ter videoclipe. Com ele, consegui explicar do que se tratava o projeto e apresentar o seu universo, que bebe fortemente da trajetória da Alcione. Além de trazer o Brasil Afro que já existiu nas telinhas e nos rádios. O vídeo foi dirigido por Rodrigo de Carvalho, de João Pessoa, e tem concepção artística de Vitor Nunes, do Pará. A caixa postal é composta por áudios que pedi aos meus seguidores, sem revelar qual seria a finalidade. Foi pontual reunir tanta coisa junta: meu lado performance, cantora, garota propaganda, e roteirista. Além de fortalecer a criação de um imaginário futuro de um Brasil onde voltaremos a ter mais espaço, porque a música pop é mais diversa do que as grandes mídias têm nos mostrado. Precisamos ficar atentos: hoje em dia estamos tendo que reabrir o lote a base de facão porque o mato está crescendo de novo.
Como você enxerga a importância de se afirmar em um momento onde a intolerância religiosa está em galopante ascensão no país?
Sempre falei da minha fé como forma de me “bem resolver”. Desde que aceitei estar dentro de um terreiro, aceitei também todas as dores e delícias que é pertencer a uma comunidade afro-religiosa e não me esconder me parece fundamental. Aos poucos, a MC Tha foi se tornando uma ponte entre jovens de terreiro, música e ancestralidade. Principalmente depois do lançamento da faixa “Rito de Passá”. Nunca achei que essa música se tornaria um grande hit visto a quantidade de músicas mais pop que o álbum tem. Eu entrego o EP Meu Santo é Forte como um presente a todas essas pessoas que veem em mim uma esperança, porque eu também tenho esperança de que a gente vai conseguir dar a volta por cima. Não acho que seja à toa, de que tantos jovens têm se dedicado cada vez mais a dinâmica dentro de um terreiro. Na casa que eu frequento mesmo, tem muito jovem dedicado a sua espiritualidade. Acredito que esteja acontecendo uma movimentação para que nos tornemos porta-voz dessas religiões tão massacradas e marginalizadas e se eu puder fazer parte disso por meio da música, aqui estou. Alguém precisa alertar que tem gente ficando cega, literalmente, por conta de racismo e intolerância religiosa. Precisamos de mais representações, mais espaços para falar das nossas vivências, precisamos de punições mais rígidas vindas do poder público, precisamos de educação afro e indígena nas escolas.
Vivemos um momento desafiador. Como a fé se manteve presente ao longo dos últimos anos?
Às vezes penso que a fé é nada mais, nada menos, do que estar alinhado ao seu próprio corpo e espírito. Claro que passamos por desafios, pois a vida é isso. Mas, quando você confia em você, no sentido mais amplo de se entregar à própria sorte, baixar as expectativas e focar no que é para ser seu, as coisas tendem a se resolver. Acho que é assim que lido com os desafios: mantenho a fé em mim e nos meus, a fé de que tem alguém me guiando.
Leci Brandão, Elza Soares, Clara Nunes e Alcione são artistas que já cantaram sobre os orixás. Qual é a sua relação com elas?
Por incrível que pareça, não vim do samba, por mais que a minha família seja nordestina, da Bahia. Cresci na periferia de São Paulo, e a diversidade sonora é bem rica: o samba e o pagode sempre fizeram a trilha sonora das ruas, bares, rádios. O meu interesse pela música brasileira na adolescência me trouxe outro repertório. Quando a minha mãe conseguiu comprar um computador, vivia no YouTube e sempre caia nas músicas antigas. Ela ficava maluca, falava que eu só gostava de música velha (risos). Até hoje sou assim, vivo mais no passado do que no presente. Essas cantoras e outros cantores formaram a MC Tha. Se existe música no Brasil, nós temos que honrar os mais velhos que construíram a estrada pra gente passar.
Alcione completou 50 anos de carreira em 2022. Quais são os seus discos favoritos dela?
A Morte de Um Poeta (1976) é um álbum lindo, e eu amo a versão de “Agolonã”. As pessoas comparavam a gente quando lancei as fotos de Rito de Passá. Acho que pela estética, maquiagem, cabelo… Achava incrível porque até então sempre ficava naquela coisa de Gal e Bethânia. O Brasil tem diversas cantoras importantes para serem celebradas em vida, acho lindo que Alcione chegou aos 50 anos de carreira sendo tão reverenciada. Tanto eu, quanto Tássia Reis, lançamos projetos homenageando essa ancestral em vida. Isso é lindo e forte demais para todas as mulheres, e para todas aquelas que ainda virão. É pensar sobre continuidade.