O produtor, compositor e vocalista da Fresno,
falou sobre processos de criação na era do streaming, hits para artistas e onde espera ver Bolsonaro em 2030.
Texto Guilherme Tintel
Foto Rodrigo Gianesi
Cerca de uma década separa a Manu Gavassi do hit adolescente “Garoto Errado” da cantora que, há alguns meses, se viu dona de uma das músicas mais ouvida do país em 2020: “Deve ser horrível dormir sem mim”, parceria com a Gloria Groove.
Pouco antes do sucesso, que bateu de frente com “Oh Juliana” de MC Niack, e nomes de peso como Anitta e MC Zaac em “Desce pro play”, a artista despontava com outra faixa, “áudio de desculpas”, do EP Cute But (Still) Psycho (2019) . Em comum, os hits têm a produção assinada pelo músico gaúcho Lucas Silveira, vocalista da banda Fresno.
Um dos gigantes da cena emo do início dos anos 2000, Fresno foi uma das poucas bandas que sobreviveram a febre que definiu o caráter de toda uma geração de jovens tristes, fadados ao estereótipo das roupas pretas, calças coladas no corpo, maquiagens densas e franjas indiscretas. Mais do que isso, uma das poucas que souberam se reinventar para seguir uma história com mais de 20 anos de música e estrada, numa realidade em que o rock praticamente inexiste nas rádios e paradas nacionais.
Sua alegria foi cancelada, disco lançado pela banda em 2019, acumula mais de 15 milhões de audições no Spotify. O registrou emplacou quatro músicas entre as dez maiores da Fresno na plataforma, ao lado de hits como “Desde quando você se foi”, “Diga, Parte 2” e “Alguém que te faz sorrir”. Tão pop quanto experimental, o álbum contou com a participação de artistas como o trio Tuyo e a cantora Jade Baraldo, e inspirou a última turnê da banda que, se não fosse a pausa, teria chegado ao Lollapalooza.
Apesar da distância dos palcos, o músico se viu ainda mais próximo do público por meio do digital. No novo cenário, compartilha desde novas demos a até mesmo partidas de jogos pela Twitch. Além de uma série de lançamentos com a banda, também apresentou novidades em seus projetos paralelos, como o EP Músicas para fumar (2020) onde aparece como Lucas e um dos seus pseudônimos mais familiares aos fãs da Fresno, o Visconde.
No bate-papo com a Revista Balaclava, o músico dividiu como têm acontecido os seus processos de criação durante o isolamento, os próximos passos da Fresno, produções para hits pop e se, afinal, o emo está de volta ou não.
Dos músicos que acompanhamos, você é um dos artistas que mais têm trabalhado nessa quarentena e lidado de uma forma criativa com o isolamento. Vide as lives da Fresno e todas aquelas produções em que a banda tocou junta de maneira remota. Como tem sido produzir nesse período?
Cara, é impressão tua! Eu trabalho muito menos do que muitos amigos músicos e produtores (principalmente os que não têm filhos!). O que eu acredito que rola é que, além de fazer o meu trabalho, eu divulgo bastante para quem estiver a fim de ver. Aí fica a impressão de que estou fazendo algo toda hora, lançando algo, quando na verdade eu trabalho normal, só que não fico mais guardando as coisas. Para alguns artistas, isso é complicado, pois eles querem ter controle sobre o que sai, o que eles põem na rua. Eu acredito que, hoje em dia, 99% das pessoas está cagando pra quem está lançando o quê. Essa noção de que a gente acaba tendo, de estar ‘desgastando’ a imagem é um lance meio míope, pois no fundo está todo mundo cuidando de suas vidas. Fazer alguém ouvir algo teu é uma conquista e tanto hoje em dia. Mas, vamos lá, sim, tenho procurado usar o meu tempo para estreitar o relacionamento com nosso público, entender algumas coisas, e claro, preparar, ou não preparar, para o que vem por aí.
A Fresno, inclusive, está em pleno funcionamento e lançou uma música nova, “Deus Ex Machina”, sucedendo o feat com Far From Alaska em “Eva” e com o Jason, do Fever 333, em “Broken Dreams”. Já dá pra falar em disco novo ou essas canções são extensões do que fizeram no SAFC?
Dá pra falar em disco novo, sim. Só não sei se devo. (Hahaha!). Sério, o SAFC foi muito especial, nos colocou em lugares que a gente achava que não voltaria mais. O sentimento que me guia hoje é o mesmo de quando fizemos o disco, que é de pisar em um território desconhecido e excitante de novo. Um rolê muito fora da zona de conforto, que está obrigando a Fresno a evoluir, mudar, experimentar e chutar o balde em alguns aspectos. O rock, ou qualquer outro estilo musical ao qual você pode estar associado, pode ser algo que vai te foder muito lá na frente. Tem muito artista, muito mesmo, que admira o fato de que fazemos a música que a gente quer MESMO fazer, e eu fico totalmente ???. Eu não conseguiria viver de outra maneira. Hoje em dia, o público está pronto para muito mais loucura do que em 2010. A cabeça abriu muito, a galera mais nova que acabou sendo impactada pela primeira vez com um disco como SAFC já está vindo com o software novo na cabeça, então esses sim realmente não se importam com rótulo, mesmo.
Dada as circunstâncias, como a pausa na agenda de shows por conta desse cenário de saúde pós-apocalíptico, o álbum chegou onde vocês almejavam?
Pois é! Para 2020, estávamos procurando dar uma BICUDA na bola, como se diz lá no Rio Grande do Sul. Seria uma aposta: manteríamos os poucos shows nas cidades em que a gente sabe que dá pra ir sem tomar prejuízo. Valorizar muito esses shows, levar gente pra filmar, gerar material, mostrar para todo mundo algo meio “OLHA TA ROLANDO UMA PARADA FODA”. Isso iria começar a chegar num plateau com o Lollapalooza, em que a gente estava se preparando para subir no palco com 11 músicos (!!!!) e realmente fazer uma experiência aumentada do que a gente se propõe a tocar. Ver se aquilo cola e tentar manter de pé aquela Fresno ali, que a gente internamente chamava de SUPERFRESNO kkk. Então, era um sonho selvagem de ter uma banda gigante, fazendo um negócio pesado, mas divertido, pop, coisa para tocar no pôr-do-sol de um festival foda. Então NÃO, esse objetivo ainda não foi completado, mas está só pausado. Sinto que o mundo e o mercado está num grande pause, num modo avião. A galera lançando as coisas, mas segurando os tiros de verdade, e sei que quando tivermos a bandeirada vai ser uma profusão de lançamentos, de ideias incubadas, de coisas que a galera foi fazendo na moita. Vai ser um troço enlouquecedor, que eu gostaria muito de ser capaz de acompanhar, mas já sei que não serei.
“Fazer alguém ouvir algo teu é uma conquista e tanto hoje em dia.”
Fã de rock tem um medo absurdo de ver seus ídolos fazendo música pop. Nesse mundão pós-streaming, a tendência é ver os gêneros serem cada vez mais diluídos entre milhares de referências. Tu explora bastante disso nas suas produções. Há anos lidando com essas expectativas, já foi algo limitante?
Eu já me limitei TANTO. Mas TANTO. Tu não tem ideia. Não me lembro de limites quando eu estava escrevendo as músicas do Ciano (2006), do “Rio/Cidade/Árvore”… Aquilo era o máximo que eu tinha disponível, era tudo que eu sabia e que eu tinha aprendido. Estava aplicando ali em tempo real enquanto digeria tanta coisa foda que ia me impactando. Mas com o tempo, tu vai se achando meio mestrinho, meio que entendeu o game, e é aí que tu começa a entrar numas viagens erradas. A gente – Fresno – viveu um momento de mudança do mercado como um todo. A música mais celebrada do Redenção (2008) é “Milonga”, a última faixa, de 5 minutos, e não algum dos quatro singles. Não sou eu dizendo, é o Spotify. Do Infinito (2012), não é a faixa-título, nem “Maior que as Muralhas”, é “Diga, pt 2”. Hoje em dia, o single tem um papel muito menor, mas ainda assim ele pode estigmatizar um disco de uma maneira ruim.
Comecei a me dividir entre vários projetos solo porque estava tentando compartimentar as minhas ideias em caixinhas separadas. Na caixinha da Fresno, não botava mais o que eu tinha de mais novo, mais inspirador naquela hora, não parecia mais o meu máximo. Eram ‘músicas pra Fresno’, e precisou que meus companheiros de banda me colocassem na parede para eu começar a me ligar. Falando assim parece violento, mas não foi. Foi basicamente um questionamento do tipo “ei, CARALHO! Esta música ‘Sua alegria foi cancelada’ é linda e ela não vai ser Visconde, isso é FRESNO, porra!”. O Guerra falou dessa maneira. E isso me abriu tanto a mente, de uma forma que eu me achei tão idiota depois…
Não consigo mais imaginar a Fresno sem esta faixa, nem algumas outras que tinham nascido carimbadas para outros projetos. Não terminei os projetos, mas parei de usar eles para experimentar. A gente experimenta na Fresno mesmo, porque isso ajuda todo mundo a se motivar, a se desafiar, e ajuda a manter a banda com algum EDGE – alguma coisa interessante para quem está chegando agora. Eu amo o saudosismo da galera, mas não alimento. Eu quero ser a única banda da minha geração que tem no TOP 5 nas músicas novas, e não os hits de outrora, porque isso vai dando uma machucada no ego do compositor. Vai fazendo ele se duvidar. Não quero me duvidar por mais de 5 minutos.
“Foi basicamente um questionamento do tipo “ei, CARALHO! Esta música ‘Sua alegria foi cancelada’ é linda e ela não vai ser Visconde, isso é FRESNO, porra!”
“Eu amo o saudosismo da galera, mas não alimento.”
Manu Gavassi emplacou dois hits produzidos por você em 2020, “áudio de desculpas” e “Deve ser horrível dormir sem mim”. Ambas funcionam muito bem enquanto músicas pop, que não soam como outros hits nacionais da atualidade. Como é essa relação de desafios e experimentações de fórmulas para um público menos familiarizado com seu nome?
Louco, né? Foi um lance muito livre. Falamos muito pouco sobre referências. A Manu é uma COMPOSITORAHHH (sic). Ela vem com a música, e quando não vem, ela vai pra casa com a base e volta com letra, melodia, conceito, clipe, patrocinador e alvará. E trabalhar assim é motivador. Estou fazendo apenas o que me cabe, que é produzir uma base foda, diferente, negociar com ela umas edições e o que eu acredito que eu faço melhor, que é produzir uns takes legais de voz. Então é isso que fizemos nesses dois trabalhos. Escuto muito pop, se bobear é o que eu mais escuto, pois acredito que hoje o pop voltou a ser uma coisa arrojada e tem muita gente buscando a diferença, o incomum. Persigo muito isso, de me basear em coisas tão diversas e estranhas que vou chegar num resultado diferente. De trabalhar de maneira suja e não-polida, de tratar ruidos e transformar em algo bonito. Tenho sido muito feliz nessa fase de produtor de divas pois me sinto mais livre produzindo, do que senti em muitos anos fazendo rock. Aí hoje eu procuro levar essa abordagem pra tudo que eu produzo, inclusive pros rocks, meus e dos outros.
O consumo da música pop pós-streaming está cada vez mais apressado e, como consequência, o que temos são músicas sendo apresentadas em durações cada vez menores. Como músico e produtor, qual a sua visão sobre essas mudanças de consumo e até onde isso afeta a sua forma de fazer música?
Acredito que isso está fazendo produtores e compositores atentarem-se para o fato de que estamos falando de música pop, bagulho pra ser consumido em larga escala e que claramente para que isso aconteça da melhor maneira, a gente tem que CUT THE BULLSHIT. Os Beatles fizeram todo mundo chorar e serão estudados pelos próximos séculos e é difícil uma música deles ter mais de 3 minutos. Sou contra uma formatação excessiva da parada, mas tenho gostado de ser direto e reto, de pensar na música como um filé, em que só fica o que tem valor, o que é imprescindível para o que se vai dizer ali. Isso fode um pouco com as baladas, que por terem andamento mais lento, acabam ficando apressadas na ideia, mas mesmo assim a galera consegue fazer umas coisas lindas, tipo essa “Lonely”, do Justin Bieber com Benny Blanco, ou “When I Was Your Man”, do Bruno Mars. É direto e reto, e já te leva para uma emoção bonita e universal rapidinho. Tenho levado isso para os meus trabalhos também, óbvio, e o próprio SAFC é um exercício da ideia de ir direto ao ponto.
“Tenho sido muito feliz nessa fase de produtor de divas pois me sinto mais livre produzindo, do que senti em muitos anos fazendo rock.”
Na época em que o emo explodiu, existiam muitas discussões que colocavam em xeque a qualidade de vocês enquanto músicos e, principalmente, enquanto artistas de rock, mas aí a gente corta pra hoje, contigo sendo convidado pra produzir artistas que vão do Capital Inicial até RPM. A musicalidade emo da época foi injustiçada? Você acha que o tempo contribuiu pra que esses trabalhos — e artistas — “envelhecessem” melhor?
1) A gente tocava mal, sim. 2) A gente não tinha experiência, caía em ideia de produtor e empresário e estava deslumbrado com o sucesso e suas possibilidades, sim. No entanto, isso JAMAIS foi um problema para nenhuma geração do rock brasileiro. Mas com a nossa geração foi, porque acredito que isso veio atrelado a uma pequena revolução de costumes, com uma molecada que tinha altas tretas em casa e encontrava nos shows um escape, uma comunidade e um pertencimento. Aí veio a tribo, os costumes da tribo e isso deixou muito conservador puto. E se tem uma coisa que existe no rock, e no jornalismo que cobria o rock, é o conservadorismo, que é um troço que não entra na minha cabeça. Mas, realmente, em entrevistas de lançamento de disco, rolavam perguntas sobre o fato de homens se beijarem e realmente colocavam isso como algo pejorativo, que nos diminuía. O bom é que muito rapidamente abriu-se a cabeça de muita gente, inclusive a minha, sobre várias coisas, de uma forma que hoje falando sobre essa homofobia arrombada do rock, parece que eu estou falando de algo que aconteceu há 50 anos, pois simplesmente não tem cabimento hoje em dia. Não acho que a musicalidade emo tenha sido injustiçada porque ela, de fato, hoje está no DNA de 90% do pop estrangeiro e em muita coisa daqui também. Os próprios fãs da época, hoje com seus 25, 30 anos, estão se permitindo ser o que reprimiam há 10 anos, e ninguém mais tem vergonha de dizer que ouve emo, que faz emo, que era emo. Mais do que isso, em alguns circuitos isso é meio que um hype. Inclusive, existem cenas de bandas emo que não tem nenhum parentesco musical com a Fresno ou com a nossa geração, mas de galera nascida já nos 2000, que foi buscar na fonte as referências e estão fazendo umas coisas bem massa, seja no rock, no lofi/sadtrap ou no pop alternativo/indie.
Falando nisso, tanto no visual quanto discurso, existem essas novas cenas emo surgindo em gêneros como o sad/emo rap, trap (Lil Peep, Post Malone, Juice WRLD) e até um revival do pop-punk pela galera do hyperpop (100 Gecs, CMTEN, FROMTHEHEART). Você tem ouvido esse pessoal? Tem algum artista ou disco desse meio que chamou sua atenção?
Eu presto atenção, sim. Tem vários troços que nem consigo entender direito, e eu AMO quando isso acontece, pois realmente quer dizer que tão fazendo algo novo de verdade. Ouço Post Malone, muito, tenho ouvido o Joji demais. Acompanho muitas cantoras semi-famosas, tipo Bülow, Phoebe Bridgers, Bea Miller, uma galera fazendo um pop muito muito bonito e bastante análogo aos emos mais pops de 15 anos atrás.
Numa pegada mais Marília Gabriela: uma música que você acha tão foda, que gostaria de ter produzido?
“I Just Wanna Feel”, da Bea Miller, e “Aeroplane Bathroom”, da Gordi.
No caminho contrário, uma produção ou composição sua que, se pudesse, tu só apertaria o “delete” ali e fingiria que nunca existiu?
Falo abertamente sempre sobre isso, e a galera fica putaça da vida, mas tem algumas mesmo que fariam zero falta. Tipo “Você Perdeu de Novo”, do Redenção, “Cativeiro” do Infinito são sons que eu nem detesto nem nada, mas sei que eles não fazem diferença, hahaha.
Um artista que você sonha em dividir estúdio?
Justin Vernon, o Bon Iver.
Pra fechar, onde você almeja estar enquanto artista daqui 10 anos?
Superfresno muito acontecendo, tipo Rock in Rio no Palco Mundo, fazendo uns projetos multimidia bizarros e conseguindo pessoas para financiar esses projetos. Sendo chamado para uma trilha de algum filme muito foda e fazer uma música muito linda com alguém muito foda. Tendo amigos com cama sobrando em muitos países do mundo, e uma vida que me leve a viajar bastante, mas não o suficiente para enlouquecer. E, claro, sempre muito inspirado. E Bolsonaro, no mínimo, preso por crimes contra a humanidade e fadado à latrina da história. ☺