A banda, composta pela artista, acompanhada de Mari Herzer, Matheus Câmara e William Bica, está cozinhando novidades em meio às mudanças, ao mesmo tempo em que resistem e persistem no independente.
Texto Ana Laura Pádua
Foto Tatá Guarino
“O TETO PRETO é incansável e justifica sua fama através de cada reinvenção, quebrando paradigmas e estabelecendo o seu próprio status quo”. É assim que Laura Diaz (Carneosso), Mari Herzer, Matheus Câmara e William Bica hoje se identificam. 2021 foi um ano de transformação para o quarteto, que ensaia duas vezes por semana, e está ainda mais dedicado a poesia, performance, artes visuais, coreografia, música eletrônica e moda. TETO PRETO é tudo isso e mais um pouco. “Tem sido um privilégio: muito trabalho, muito aprendizado, muito carinho e admiração. E é essencial pra mim enquanto artista chegar num ponto da carreira em que preciso de tempo de ensaio, dança e dedicação pra chegar onde quero”, conta Laura Diaz. Para marcar esse novo começo, o grupo realizou um mini-show na Casa de Criadores e em seguida, o (incrível) aniversário de 8 anos da MAMBA NEGRA. Analisando essas duas apresentações, o que destaca é um TETO PRETO que se comunica mais como uma banda, mais punk, mais persistente. Conversamos com a Laura Diaz sobre a nova era, a importância da maturidade e os seus maiores desafios atualmente.
Qual a importância da mudança?
Agente só vai sacar tudo isso quando voltarmos a pegar palcão, com gente do outro lado ao vivo e quando pudermos mostrar o novo disco completo. Eu sempre acho que a gente só vê, de fato, as nossas criações, nossa performance, nossa música, nosso vídeo, quando enxergamos elas através dos olhos dos outros, quando podemos apresentar. Jogo de espelhos. Sinto, como nunca, o TETO operando como uma banda, com 4 integrantes cheios de personalidade e protagonismo. Apesar de termos começado a tocar juntes só em outubro de 2020, nesses 11 meses, a gente tocou, ensaiou e produziu mais que a banda fez esses anos todos. Uma formação 100% MAMBA não quer paz com ninguém. Vejo o TETO como um projeto artístico que vem amadurecendo desde novembro de 2014, quando fundei a banda. Começamos com a pegada de jam session, com 4 integrantes, sendo dois de um background de clubes. A segunda formação é marcada pela entrada do Loïc em 2016, com o lançamento do EP Gasolina e do videoclipe. Pedra Preta lançou a terceira formação em 2018, com 5 integrantes, com a qual viajamos o mundo. E com a pandemia entramos neste novo ciclo, 4 integrantes intimamente ligados à MAMBA – e duas mulheres, finalmente. Encerramos muito bem o ciclo de Pedra Preta viajando o mundo todo e continuando a fluir com quem estava nessa com a gente. A banda tá com um espírito mais jovem, tá mais dinâmica, disposta, pronta para desafio e cheia de tesão pra fazer o que for necessário para concretizarmos nossa música, nossos espetáculos, nossas intervenções artísticas.
Essa nova formação vem com mais instrumentos, deixando a performance mais dinâmica. Como foi decidir tudo isso? Vocês já pensavam em trazer esse lado mais “banda” para o grupo?
Esse é o caminho natural das coisas. Faz algum tempo que eu e Bica tentamos construir algo mais fluido como banda, mas isso vai muito do perfil das pessoas de cada formação mesmo. Com a Mari e o Matheus é emocionante em vários sentidos, mas principalmente porque elxs continuam ocupando o palco atrás dos praticáveis na maioria do tempo, só que eles não são mais a figura incógnita disparando os eletrônicos na sombra. Os dois têm uma ligação muito forte com o ritmo, com a harmonia, tocam piano, produzem, gravam e mixam muito bem. O Matheus também traz a guitarra e os dois têm vozes muito boas que a gente já começou a trabalhar nos backing vocals nos shows de estréia. Os dois conheciam já relativamente bem o workflow do TETO, um pouco de como os shows eram montados, etc. A gente está numa formação especialmente nerd: curtimos muito tocar, fritar até encontrar os timbres y ritmos que queremos. E montando esse show, estamos inventando o nosso novo set up, o novo som do TETO e descobrindo como esse disco vai se traduzir num show. Você faz o som dos instrumentos que você usa, e eles acabam te usando pra tirar o som deles. Então a gente se enfia na garagem, fica ouvindo música e procurando referências, testando arranjo, gravando guia, trocando ideia, fazendo brainstorm, montamos equipos, ficamos dedilhando os synths procurando melodias até chegarmos em algo que a gente curta.
Como funciona o processo de gravação e composição de vocês?
A gente se encontra toda semana pra tocar, isso é inédito. Tem sido um malabarismo com as agendas de muito trabalho e quase nenhum dinheiro, mas tamo ganhando fôlego e ritmo, nada se perde. Algumas músicas do novo disco surgiram em jam, na composição da trilha para a vídeo-performance das TRINITAS. Outras, eu já tinha uma letra, melodia e clima mais estruturados pra gente levantar e criar junto a partir do esqueletão que trouxe. A parte de composição das harmonias, dos synths, do ritmo e instrumento é bem dinâmica entre o Matheus e a Mari, e ela tem pego mais a responsa de mixagem “final” das músicas. O Bica está sempre presente no estúdio trazendo ideias rítmicas pros elementos eletrônicos, fora a parte de sopro e dos naipes que estamos pirando. Queremos gravar a parte de percussão, trombone, voz e instrumentos orgânicos num estudiozão, mas ainda precisamos de tempo para entender onde isso vai acontecer. Já estão rolando propostas muito legais.
Como a moda influencia o TETO PRETO?
O TETO é uma banda que trabalha, desde o início, a dimensão performática, poética, gráfica e audiovisual do espetáculo. A gente disputa imagens, sonhos, idéias, momentos de liberdade. A gente luta com esse arsenal. O corpe é ferramenta y suporte para essas experiências e a moda está totalmente ligada a esses processos, isso não é um dado novo. É algo fundamental na história da música. O trabalho com a Fábia Bercsek nos figurinos da CARNEOSSO é importantíssimo na construção dessa discussão. E agora, nessa nova fase, temos a oportunidade de expandir esse trabalho em todos os integrantes da banda. Nesse sentido, queremos trabalhar com novas marcas, estilistas e artistas brasileiros e da cena LGBTQIA+ internacional, construindo nossa identidade cênica a partir do reconhecimento e fortalecimento dos produtores locais. Estamos começando a construir essa pesquisa com a querida Jalaconda, que está no mesmo espírito do TETO e pronta para se jogar com a gente.
Agora vocês contam com a bailarina e coreógrafa Juana Chi para o desenvolvimento desses shows. O que vocês querem transmitir para o público? Qual a importância da performance?
A parte de roteiro e direção artística do disco, dos shows e clipes ficam mais comigo. Minha forma de “compor” processos artísticos coletivos é bastante orgânica, sempre tento trabalhar os conteúdos a partir do que se revela em ensaio, em grupo. Com a saída do Loïc, não tive vontade de substituí-lo, porque não é algo possível. Odeio quando as coisas mudam, se transformam e as pessoas negam a mudança tentando colocar algo no lugar. Eu achei que era importante assumir a mudança e me colocar na fogueira, no bom sentido. Achei que seria uma ótima oportunidade para retomar com mais afinco o meu trabalho performático e corporal, encarando o desafio de ocupar um palco todo como banda.
Já estava me aproximando da Juana Chi e acompanhando o trabalho dela como professora, como bailarina nas performances na MAMBA e na cena do Vogue. Fiquei quase um ano tomando coragem pra falar com ela e propor esse trabalho de coreografar o TETO, principalmente porque não temos dinheiro em caixa, porque tudo tem que ser bem planejado com antecedência pra rolar. E eu fico muito emocionada com esse encontro, com o privilégio de ser dirigida pela Juana. Nosso intensivo inicial durou quase 3 meses e fez uma diferença brutal na minha vida. É uma batalha conseguir “poder” me dedicar ao trabalho de corpo e estou conquistando esse tempo, esse direito de desenvolver meu trabalho com qualidade, não tenho mais como esperar. Meu corpo precisa disso, assim como preciso comer, me banhar, transar e dormir. E o corpe tem me revelado muita força em momentos em que a cabeça fraqueja. Essas curtas horas que temos em palco são o momento de projetarmos juntas o direito ao épico, ao poder, à luz do sol que queima. E estar com a Juana é, pra mim, aprender cada dia mais um pouco sobre a mulher que luto para me tornar.
O que você, Laura, espera para essa nova trajetória?
Atualmente estamos produzindo e participando de uma track da rainha Deize Tigrona, para seu novo álbum, que será lançado pela Batekoo Records. É uma das maiores honras, responsas e desafios que tivemos até agora. O segundo álbum é previsto para o primeiro semestre de 2022. Confesso que estamos dependendo bastante de um Proac ou Natura Musical ou parceria ou o que vier. Estamos abertos e lutando muito para concretizar essa nova era. O TETO é um território muito fértil para o desenvolvimento artístico não apenas nos espaços de show, mas como coletividade artística audiovisual, performática, poética, multidimensional. O novo álbum está ainda em composição e já tem muita coisa legal e louca, fica difícil escolher o que representa mais a gente. Tem algumas novas músicas para surgirem e descobrirmos o que é. Ele já tem nome, mas ainda não vamos falar.
Eu destacaria algumas coisas das músicas novas que já apresentamos na MAMBA e CdC:
“Para sempre vou te amar” : Foi escrita para o Loïc. É uma belo choque de monstro geminiano disfarçado de pop. E traz também um refrão antropofágico com “só me interessa o que não é meu” – lei das BACANTES, lei das antropófagas.
“Queda Pro Alto”: no ano passado, a Mari comentou que o tio dela tinha escrito um livro organizado pelo Suplicy. Ele era um cara trans. Quando fui ver, ela me mostrou o livro “Queda pro Alto” (1982), do Anderson Herzer. É o primeiro relato autobiográfico publicado por uma pessoa trans no Brasil (!!!). Ano que vem, faz 40 anos. Falei pra Mari: ele é o “Safo” do nosso novo disco. Ele é nosso farol e inspiração. Mergulhei no livro com muito carinho e me apaixonei pelo Anderson, Bigode. Foi muito difícil escrever algo sobre ele, e eu tentei ser envolvente, singela e carinhosa.
“Jóia”: Caetano, vamos falar com você em breve pra você pelo amor das deusas liberar a gente pra re-gravar essa música maravilhosa. A gente não tem grana real oficial. É uma queridinha dos fãs do TETO e uma das primeiras músicas que eu trouxe em improviso pros primeiros shows do TETO desde 2014.
O TETO está mais punk com a nova formação?
O fato de sermos uma banda no Brasil já é algo, em si, bem punk. O mais comum no mercado, atualmente, é vermos artistas solo com uma equipe grande. E acho que o fato de termos essa atitude pode ser usado para glamourizar a realidade de que ganhamos muito mal ainda, nossa hora de trabalho é muito baixa no Brasil e no mundo. Exige muita energia, dedicação, entrega, alegria e força de vontade pra sobreviver em banda e em bando à pandemia, e sobrevivemos. Em termos de som, muita coisa influencia a gente nesse novo momento: dubstep, industrial, drum’n’bass, garage, trip hop, grime, trap, pop, grunge, pós punk, new wave, punk, jazz, canção…
Quais são seus maiores desafios hoje em dia?
Viver em pleno governo Bolsonaro. Ser artista independente num governo que destrói ativamente todas as instâncias da cultura. Prensar um disco no Brasil. Sobreviver do seu trabalho no Brasil. Viver na era do Tik Tok e da precarização dos trabalhos artísticos. A indústria da música não é sobre a música que você apresenta. Mas sobre a grana que você tem pra investir no produto que vai lançar. Aí é isso, o pastiche fica o dia inteiro na sua frente no twitter e os projetos mais legais acabam sendo meio abafados porque não tem grana pra comprar seguidor em rede, assessoria de imprensa, mil clipes, mil fotos, mil imagens. Me desanima bastante, mas é isso, acho que nunca saímos da ética do jabá. Temos que continuar acreditando no nosso trabalho, recebendo carinho dos fãs e fortalecendo as nossas pra atravessar mais essa tempestade. Estamos trabalhando muito e com muito carinho.
A pandemia veio e o caos se instalou. Mas, atualmente, em qual cenário você vê a música eletrônica brasileira?
A música eletrônica brasileira está forte como nunca. Está em todo lugar, em todos os gêneros musicais, em todas as idades e meios, do underground ao mainstream. Somos um país que já conta com uma tradição eletrônica nacional popular muito forte com o funk, tecnomelody, hip hop, arrocha, forró, etc. E entendo o universo da música eletrônica como sendo um gênero muito livre, abrangente e fértil. Acho que, de alguma forma, todas as músicas e épocas se misturam e podem acontecer na música eletrônica.