Juliana Linhares e os frutos colhidos do “Nordeste Ficção”, seu primeiro álbum solo

A cantora e compositora Juliana Linhares lançou o projeto em março deste ano. O trabalho conta com a participação de nomes como Chico César, Zeca Baleiro, Tom Zé e outros. Leia uma entrevista com a artista a seguir:

Texto Jorja Moura
Foto Clarice Lissovsky 

Convidamos Juliana para contar um pouco mais como foi o lançamento do disco, curiosidades, suas referências e até alguns momentos engraçados, exclusivamente para a Revista Balaclava. 

Como foi trabalhar o Nordeste Ficção, seu primeiro álbum solo, no meio de uma pandemia?

Ao mesmo tempo difícil e animador, porque foi o que me deu combustível durante muito tempo pra levantar e fazer o tempo passar com um pouco mais de esperança. Mas foi tudo gravado à distância, o que foi legal porque pudemos unir pessoas que estavam em lugares diferentes e distantes, mas não tivemos aquele calor da troca na presença, que eu adoro. Hoje eu olho para o álbum e agradeço, me imagino sem ele, o que eu seria agora e prefiro tê-lo realizado, mesmo nessas circunstâncias. 

Quais foram as suas maiores referências na hora de compor?

Eu tinha vontade de unir Chico César, Marinês, Zeca Baleiro, e Cátia de França ao que eu trazia na vivência da minha voz, do Pietá e de outros projetos. Zé Ramalho, Elba, Amelinha, Elomar, Ednardo, Clemilda, Zabé, tanta gente… Também queria cruzar a barreira do regionalismo na estética e fortalecer a pluralidade da região. Então pensava em Jéssica Caitano, no “rapente” que ela faz e pensava na MPB, e queria muita coisa misturada que é o que nós somos.

Ao ouvir o Nordeste Ficção, me fez remeter às grandes cantoras do nosso nordeste, como Elba Ramalho, Cátia de França e Amelinha. Como você enxerga essas novas musicalidades femininas vindas do Nordeste, como você e tantas outras meninas?  

Eu as vejo com muita potência de desconstrução. E também muito donas de sua arte, das letras, da produção musical, dos conceitos. As fronteiras estão balançando mais, a música que sai do nordeste tem ganhado mais espaço e valor, mas ainda enfrentando os preconceitos, principalmente em termos de venda mesmo, shows, etc. 

Me inspiro vendo alguns pipocos como Luana Flores, que acaba de lançar um trabalho chamado Nordeste Futurista, a própria Jéssica, de quem falei ali em cima e seu rap repente, Bia Ferreira e sua voz poderosa pra dizer coisas que importam, Khrystal que toma para si o violão e o ritmo, Bixarte, Luísa e os Alquimistas, todas elas e muitas outras que fazem abrir a cabeça pro que pode ser a música hoje. 

Em entrevistas, você conta que a ideia inicial do Nordeste Ficção veio a partir de inquietações ao ler o livro “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”, de Durval Muniz de Albuquerque Júnior. De que forma você conseguiu explorar no seu álbum essa ruptura dos estereótipos nordestinos?

No final do livro, Durval nos instiga: já que foi através das artes que a identidade nordestina se espalhou e se fortaleceu como a vemos hoje – e ele justifica isso durante a leitura do livro – que seja através das artes que sigamos criando e construindo outras ideias de nordeste. Fiquei pensativa. As artes têm esse poder de levar as ideias adiante, em formatos artísticos diferentes e fortalecer discursos, entrar na casa das pessoas, nas mentes, na cultura. Quando li isso me senti convidada. Pensei, caraca, acho que eu posso tentar fazer meu disco como um documento desse processo de desconstrução, trazer essa discussão à tona de uma maneira evidente. Busquei criar ficções e brincar com elas, na música e na imagem. 

Quis trazer um repertório plural com uma sonoridade rica e que bebesse na raiz, mas que se embriagasse no contemporâneo. Criamos beats para o forró, trouxemos o Tom Zé e a tropicália, nos referimos ao Belchior, político e atemporal. Cada faixa virou um universo sonoro e queríamos isso, várias identidades juntas. Pusemos o Durval na capa, como documento mesmo. Queria letras que falassem de assuntos diversos, como na “Lambada da Lambida” e que se misturassem às imagens de um nordeste mais mítico, como no Bolero de Isabel. Queria um frevo pra aquecer a vontade de rua, mas não só de carnaval, de gritar contra o desgoverno, a rua como espaço de manifestação e a falta que faz estar ocupando. Acho que apoiada em toda essa construção do passado, queria estar sendo passagem pras novas formas de olhar pro nordeste e pros nordestinos, potentes e diversos e ter o disco como um projeto artístico que apontasse esses questionamentos, que as pessoas pudessem pensar nisso: o nordeste é uma invenção? Como lidar com isso?

Qual é a lembrança mais gostosa que você tem do nordeste, morando agora em outra região do país?

Essa complexidade de cidade com maresia, passar na casa da minha avó e ganhar um prato de comida cheio, minha mãe que agora tem um neto. As fogueiras na época do São João, isso é muito amor e saudade.

O processo de criação do álbum deve ter sido uma experiência única. Você poderia contar alguma curiosidade  ou algum momento engraçado que aconteceu durante as gravações? 

Aconteceu bastante coisa. Uma curiosa e engraçada é que tentei as participações de Elba e Amelinha. Por um instante, as duas estavam dentro e depois não rolou nenhuma, risos. Longa história.

Chico César é um grande compositor paraibano e esteve presente na música “Embrulho”, do seu álbum. Como tem sido essa relação com ele? E o que você sente ao cantar essa canção, que tem essa letra tão potente e tão significativa? 

A música de Chico sempre fez parte da minha vida. Cantei muitas vezes em roda suas músicas, sabia de cor, fui a vários shows. Tivemos a participação dele no primeiro disco do Pietá e foi uma troca incrível. Chico tem uma riqueza muito profunda. O tempo passou e nos cruzamos na peça O canto de Macabéa, onde fui alternante da Laila Garin e Chico fez toda a trilha. Nos encontramos de novo, mas veio a pandemia, trocamos mensagens até que enviei a letra e logo ele me devolveu a canção pronta. 

A música “Aburguesar” foi feita pelo grandioso Tom Zé e está presente no seu álbum. Com melodias que lembram muito o movimento Tropicalista da década de 70. Como surgiu essa parceria e o dueto com a cantora Letrux? E como você enxerga a relação que essa música tem com o que aconteceu na época da ditadura e com esse momento sombrio que estamos vivendo no Brasil nos dias de hoje?

O Marcus Preto fez um disco com Tom Zé e durante o processo eles encontraram essa música gravada num rolo de fita, acredito que de 1972. Resolveram colocar no álbum, mas Tom quis mudar a letra, acabou fazendo outra versão e gravou em “Vira Lata na Via Láctea”. Quando começamos a conversar, Marcus se lembrou do registro antigo e me mandou, eu curti muito. Decidimos gravar a letra inédita, da década de 70, mas que segue atualíssima e convidar alguém pra “gozar” comigo durante essa transa que a letra propõe. 

Eu queria que fosse uma mulher e rapidamente: Letrux! Não gravamos juntas, mas trocamos bastante ideia e foi super especial. Eu adoro Letícia e fiquei feliz com o quanto a música ganha quando ela entra e traz toda a sua identidade, a sua voz que nos preenche de imagens e corpo e palco e letras. E sim, essa canção nos faz lembrar de um período terrível da nossa história e faz ponte com o que vivemos agora. O aburguesamento em face à vontade e a necessidade de lutar para transformar um país, o medo dentro de uma sociedade que nos espreme ao máximo, até fazer escorrer nossas ideias e desejos. Acho que essa música é despertador de consciência pra gente não esquecer o que realmente importa em estar vivo, para envelhecer sem abandonar o olhar emocionado e questionador das coisas. 

Como está sendo a repercussão do álbum? E quais são suas expectativas para às voltas aos palcos?

A repercussão tem sido muito positiva, carinhosa. Recebi mensagens de apoio de pessoas muito diversas. Isso foi bem legal. Pessoas de vários lugares do Brasil, com histórias muito diferentes. Acho que o disco conseguiu se espalhar para novos públicos e isso era algo que eu queria. Estou preparando mais um show gravado, mas já tenho muita coisa em mente para os palcos, estou muito ansiosa pelo ao vivo. Esse feat com Letrux vai rolar no palcão, e vai ser divertidíssimo.

Além do Nordeste Ficção, você também participou do novo single “Mais Discreto”, da Angélica Duart.  Como surgiu esse convite? E se puder nos dar um spoiler, quais são os seus novos projetos que vem por aí? 

Eu já conhecia a Angélica, mas não éramos muito próximas. E aí veio o convite, eu achei a música ótima e fiquei animada. Além dela, a equipe toda era muito especial e foi uma delícia essa troca, eu nunca havia participado de um clipe de outra pessoa. E eu curto isso de ser outra coisa, estar em outro lugar, gosto das trocas. Agora ando investindo em novas parcerias para o ano que vem, além de estar focada no desenvolvimento do show ao vivo de Nordeste Ficção. Farei algumas coisas de teatro também, Pietá tem planos para 2022, turnê fora… Quero muito circular (espero que seja possível) com o show do disco novo mesmo! Tocar bastante, vai vir vinil, muita coisa.

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