gorduratrans “aperta start” na nova fase da banda com terceiro disco

Felipe Aguiar e Luiz Felipe Marinho comentam os caminhos até “zera”, álbum gravado durante o ano passado

Texto Lucas Vieira
Foto Thaysa Paulo

 

No futebol um jogador “zera” quando chuta a bola para fora, tirando-a da zona de risco na defesa. Em seguida a partida recomeça, agora com os ânimos mais calmos. No game Super Mario Bros, “zera” aquele que derrota o chefe final. No jogo seguinte, o encanador enfrenta novas fases e desafios, contando com novos parceiros em sua jornada.

Games e futebol são duas paixões da banda de shoegaze gorduratrans, que escolhe zera como título de seu novo álbum. Cinco anos depois de paroxismos, a dupla carioca em atividade desde 2015 lança sua primeira obra feita em um grande estúdio, com produção e mixagem assinadas por terceiros. Essa também é a primeira vez que adicionam synths e percussão em sua sonoridade.

Depois de muitos shows pelo Brasil entre 2017 e 2018, Luiz Felipe Marinho (bateria e voz) e Felipe Aguiar (guitarra e voz) deram uma pausa em 2019. O começo da pandemia em 2020 intensificou o hiato e a dupla encontrou outras ocupações. O guitarrista voltou para seu bairro de origem, Magalhães Bastos, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Além de trocar de emprego, se reaproximou da família, estudou jardinagem e considera o período como “um processo de reconexão espiritual, ancestral e de cura”.

Foi em maio de 2021 que a dupla se reencontrou. Reassistiram gravações de shows e entenderam o significado do gorduratrans em suas vidas. Quatro meses depois, começaram a trabalhar em zera, pré-produzindo o álbum no Estúdio Sítio Romã, em Araçoiaba da Serra (SP), durante uma semana.

Capitaneado por Lucas Theodoro, o espaço serviu para a imersão na primeira etapa do trabalho. “Essa estadia foi definitiva para o disco soar da forma como foi finalizado, a gente acordava e dormia pensando nas músicas”, revela Felipe. Neste momento, pensaram os timbres, fizeram os primeiros takes e trabalharam nas canções, ouvindo ideias do anfitrião e dos produtores Roberto Kramer e Fernando Dotta – que também gravou as linhas de baixo.

Do sítio, a banda seguiu para o El Rocha, o estúdio de Fernando Sanches, que assinou a engenharia de som de zera, ao lado de Rodolfo Duarte, localizado em São Paulo. Além do apoio técnico e artístico, contaram com equipamentos que definiram a sonoridade do disco: amplificadores, pratos de bateria, pedais e cinco guitarras. Parte deles foram emprestados por integrantes de bandas amigas, como Terno Rei e Raça.

Produtor musical e responsável pela mix do disco, Roberto Kramer tem o seu projeto próprio, o RØKR, além de trabalhar com outras bandas como Kill Moves e Gab Ferreira. Sua participação em zera aconteceu a convite de Fernando Dotta. “Rob”, como é chamado pelo gorduratrans, foi quem inseriu os elementos eletrônicos no disco.

Kramer pontua: “Eles são muito profissionais, não impuseram bloqueios. Entendem que o disco é uma obra que fica para sempre e que é preciso fazer o que a música pede, podendo rearranjá-la ao vivo. Essa parte humana foi o que mais gostei, além de discutir arranjos e quais guitarras usar”.

Característica nova em relação aos discos anteriores da banda, o resultado da voz em evidência foi parte do trabalho de Kramer. “As letras são muito boas, mas sempre teve essa cachoeira de guitarras na frente. A gente segurou essa característica mas conseguiu achar o equilíbrio da sujeira com a poesia”, comenta.

Evidenciar a voz trouxe destaque para as letras que, segundo a banda, nunca foram tão boas. Se antes o tema principal era o amor romântico, em zera as canções falam sobre amigos, lugares, mães, religiosidade e futebol. A questão do vocal também é estética. Com o processo técnico mais adequado, buscaram um resultado menos ligado ao lo-fi.

Com oito músicas, o trabalho abre com “crista”, um shoegaze com distorções sujas e muitas guitarras. Single e a canção mais pop do álbum, “enterro dos ossos” não tem reverb, intensificando a dinâmica rítmica da guitarra. Música de trabalho da obra, é a primeira a receber um clipe onde o duo atua.

Falando sobre estresse e ansiedade, “cortizol” traz a sensação de paranoia com seu tempo quebrado. Refletindo sobre as mudanças ocorridas em seu bairro, Felipe fez “nem sempre foi assim”, a primeira canção sem distorções, e com letra sobre saudade e esperança. Em “alquimistas”, a dupla homenageia suas mães – “meu maior medo durante a pandemia foi que acontecesse algo com ela”, diz o guitarrista.

Apaixonada pelo Flamengo, a dupla compôs “arão”, referência ao volante rubro-negro William Arão. A música chegou a se chamar “flaemo” e tem citação de texto de Nelson Rodrigues. “Ser flamenguista é incrível e também horrível. Assistimos a derrota na Libertadores juntos e foi uma tragédia. O Luiz foi dormir oito e meia da noite de tristeza, e ele nunca dorme antes da meia noite”, comenta Felipe.

A dupla define a penúltima faixa de zera como o encontro de suas diferenças. Em “jaco”, Felipe (ateu de família evangélica) e Luiz (umbandista) trouxeram a percussão para a canção onde refletem sobre a espiritualidade. Encerrando o disco, a esquecida “caveira” foi recriada através do vídeo de um show da banda, e homenageia o amigo Flávio Caveira.

Para a capa de zera, foram escolhidos tons de vermelho e preto – pela ligação com o Flamengo e também pela representação das cores na umbanda. A arte inclui símbolos que ilustram os últimos anos da gorduratrans, como celosias – flores que Luiz passou a cultivar durante a pandemia –, uma seringa como a que aparecia em LPs antigos, com o slogan “doctored for Super-sound” e referências do álbum A Tábua de Esmeralda (1974), de Jorge Ben.

A gorduratrans está empolgada com seu novo momento. Entre as novidades, a banda passa a incluir em sua formação Gabriel Otero (baixo) e Pedro Simião (guitarra), novos músicos que não participaram da gestação de zera. Refletindo sobre o álbum, Luiz afirma: “Ele é bastante sincrético e, por isso, político. É uma experiência bem diferente da que tivemos nos discos anteriores”. Felipe completa: “É um novo começo, uma nova perspectiva sobre como olhamos nossa música. Foi um processo de contribuição muito grande, é uma obra construída a oito mãos. Sem essa cooperação não daria certo”.

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