A artista mineira vai apresentar o repertório do disco na próxima sexta-feira, 10.3, no Sesc Belenzinho em São Paulo
Texto Damy Coelho
Foto Teodora Velloso
A história começa assim: uma mulher de família humilde, que vivia num bairro ao norte de Belo Horizonte, dá a luz a uma menina. De início, chamou-a de Liliam. E por algum tempo foi assim – viveu como Liliam da porta de casa pra dentro, pois ainda não tinha sido registrada. Quando chega o dia de ir ao cartório, a mãe muda o rumo da prosa: “Liliam” já não fazia mais sentido. A menina se chamaria “Jennifer”.
A música sempre esteve presente em sua casa. “Meu pai era boêmio e seresteiro”, conta Jennifer Souza. Ela também tem na memória a imagem da mãe escutando Roberto Carlos. A essa altura, eles moravam no bairro Saudade, região leste de BH. Foi ali que ela teve as primeiras aulas de violão. “A música, de certa forma, me ajudava a fugir da realidade difícil”, reflete.
A influência do professor foi crucial para o seu início na música. “Ele me apresentou Caetano, Tom Jobim e Chico Buarque”, lembra. Ali, ouvia da MPB ao rock clássico. “Ele tem uma coleção invejável de vinis. Tinha todos os discos dos Beatles e do Genesis. Eu chegava da escola, ia pra casa dele pra tocar violão e ele anunciava: ‘hoje, vamos conhecer uma banda nova’’.
Avançando no tempo, Jennifer Souza, cantora, compositora e instrumentista, é integrante dos grupos Transmissor e Moons. Lançou um disco solo com boa recepção (Impossível Breve, 2013) e, nesse espaço-tempo, desenvolveu o conceito que amarrou o seu segundo álbum, Pacífica Pedra Branca, lançado em 2021. Com edição em vinil, o disco foi lançado pela Balaclava Records no país e pela Disk Union no Japão.
De início, se inspirou na boêmia região central de BH, especificamente o Edifício JK, idealizado por Niemeyer nos anos 1950, prédio onde seu pai morou por alguns anos e, curiosamente, onde eu moro hoje. A partir deste ponto focal, a narrativa do disco tomaria forma, tendo a madrugada como tempo primordial. Até o título já estava escolhido. Tudo muito bonito, cheio de referências, mas ainda não soava ideal. Não tinha a essência que Jennifer buscava.
Lembrou-se, então, que um dia foi Liliam – ou quase foi, porque sempre se reconheceu Jennifer. Foi quando decidiu pesquisar a origem do seu nome. Jennifer é “suave, branca” e Souza significa “pedra”: suave pedra branca. Achou poético, especialmente ao trocar o “suave” por “pacífica”. Logo descartou a história fake inspirada pela noite boêmia e deu ao disco um tom mais existencial.
As canções são assinadas por ela ou em parceria dos amigos Luiz Gabriel Lopes (“Ultraleve”), Rafa Castro (“Na ponta dos pés”) e Fabio Góes (“Ser no espaço a minha luz”). O registro também conta com participação da Moons (“Serena”) e Tiganá Santana (“Oração ao sol”), além dos parceiros da Transmissor, Thiago Corrêa e Leonardo Marques, o responsável pela produção musical do álbum.
Para além das belas camadas instrumentais, ouvir esse álbum é uma experiência sinestésica, com caminhos sonoros que nascem nas montanhas e desembocam no mar. Não por acaso, o disco teve destaque em listas renomadas de melhores álbuns do ano, como da APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes).
Oito anos separam os dois álbuns, tendo em comum os integrantes Marcus Abjaud (piano), Frederico Heliodoro (baixo) e Felipe Continentino (bateria). O primeiro disco foi criado por canções engavetadas, como “Sorte ou Azar”, que se costura a “Logo Tudo Acabado”, “Possível Breve” e “Cuidar de Si”. O disco transita entre o folk, a MPB e o rock alternativo.
Já o segundo trabalho, traz mais densidade nos arranjos com influência do jazz. Temáticas como a imensidão do horizonte e o sentimento de liberdade iluminam o disco, e aparecem com mais proeminência em faixas como “Amanhecer”, “Birds” e “Serena”. Esta última, uma bossa que combina com o fim de tarde de um dia de verão. Destaque também para a relação com o mar em “Ser no espaço minha luz”.
“Ao contrário do meu primeiro disco, que é mais pautado nas relações afetivas, o Pacífica Pedra Branca dá um passo rumo a assuntos mais existenciais. E, mesmo com a melancolia – que é inerente à minha composição – ele tem essa leveza, essa coisa mais sutil. Fala do universo, das imensidões, do céu e do mar”, explica.
Jennifer conta que tudo vira música: uma cena, uma paisagem ou um mergulho íntimo nas vivências pessoais mais profundas e, por vezes, dolorosas. É o caso “Ser-Estrêla”, lado B do Pacífica, composta em homenagem ao amigo e músico mineiro Vander Lee, que faleceu em 2016. A melodia, solar e sensível, pede passagem se tornando várias em uma só, transformando o luto em outros sentimentos.
Para além das inspirações, os dois consistentes álbuns solo fecham ciclos e propõem recomeços. Impossível Breve se encerra com “Cuida de Si”, espécie de conselho para o futuro, um apelo, ainda que sereno: “Cuida de si primeiro para dividir, ser inteiro/ Pegue a vontade que nascer além do medo/ Faça o céu abrir depois de rir por dentro”.
Pacífica Pedra Branca também tem um belo desfecho com “Oração ao sol’’. A faixa intercala uma história pessoal de separação à emoção de ver um vídeo de Tiganá Santana tocando para o mar de Itapuã. Ele dizia: “o sol me ensina a morrer”. A frase ficou na cabeça de Jennifer e deu origem à letra. Ela, então, chamou o artista baiano para uma participação que agregou ainda mais à canção, revelando a sintonia entre os vocais. “Oração ao sol” fala sobre renascimento, tendo o céu e o mar como testemunha – “O que me salvou do lugar ruim onde eu estava foi essa música”, confessa a compositora.
O Clube da Esquina é referência para artistas mineiros por dizer algo que as canções tropicais talvez não consigam captar, algo da montanha, do clima e do reservado. A faixa- título do último disco, por exemplo, tem claras raízes em Minas Gerais, entrecortadas por sonoridades que remetem a Milton Nascimento e Lô Borges. Mas é importante ressaltar que o grupo também tem a sua própria história com o mar: basta recordar que o disco seminal da música nacional foi gestado entre BH e Niterói. Em Minas, o mar é mais do que paisagem, é miragem, uma inspiração sem fronteiras.
O oceano também comove a cantora. Sua música é universal, pois, além de investigar sentimentos profundos, fala da ligação entre eu-lírico e o ambiente que o cerca, como se virassem um só, e esse ambiente pode ser o mar, a montanha ou o céu. O mar é onde se morre para ressurgir. Afinal, como ela mesma canta: “nós temos tempo”.
Jennifer Souza tem o tempo ao seu favor. Nos últimos meses, ela foi chamada para abrir o show da estadunidense Demi Lovato, no Mineirão, tocou com amigos suas canções solo para uma plateia atenta na Virada Cultural de BH e se apresentou com o Transmissor, na Autêntica – uma das principais casas de shows da capital mineira. O público a abraça, seja no palco da sua cidade, seja em São Paulo, Lisboa ou Tóquio. Não estranha que sua música alce voos distantes daqui: Belo Horizonte é apenas uma fotografia na parede quando se pode tocar o céu.
Jennifer Souza no Sesc Belenzinho: show na sexta-feira, 10.3, às 21h30. Ingressos aqui.