A catarse performática e a bem-vinda inadequação de Kim Gordon, Kim Deal, Laura Ballance e Alê Briganti.
Texto Márcia Scapaticio
Foto Natalia Mantini
Um sapato de salto alto. Uma camiseta justa com gola redonda. Um colar bem rente ao pescoço. As presilhas que contornam o rosto, impedem que os fios caiam nos olhos, enquanto a cabeça se mexe e os braços seguem firmes, desenhados pelo peso do baixo – um contrabaixo elétrico. Nas bandas, a figura da vocalista ganhou importância, a front woman desperta tanta comoção por ser a única mulher entre os homens.
O microfone é da garota da banda, a voz nem sempre é, porque estão cercadas em ilhas de identidades na audiência formada por garotas buscando representatividade. Não é bom se ver no palco? Mesmo assim, as qualidades das artistas não são colocadas à luz por si mesmas. O chamariz se faz, em sua maioria, por ser a única mulher em um tempo espaço masculino demais, as bandas de rock. Os exemplos deste texto são as estadunidenses Kim Gordon, Kim Deal, Laura Ballance e a brasileira Alê Briganti.
Pela ordem de impacto provocado por elas na vida de quem escreve: Kim Gordon, baixista e cofundadora da Sonic Youth, banda de rock alternativo norte-americana, que lançou o seu primeiro disco, Confusion is Sex, em 1983 – antes desse, o EP homônimo de 1982 trazia 5 faixas e um pouco do que estava por vir. O grupo fez o seu último show na cidade de Paulínia, no interior de São Paulo, na noite de 14 de novembro de 2011, há 10 anos, como parte do extinto Festival SWU, Starts With You, que abrigava a ainda urgente temática da sustentabilidade.
Kim Deal, que por anos esteve no centro da formação da banda Pixies, mais precisamente, de 1986 a 1993. Em 1989, juntou-se à sua irmã Kelley Deal para, em paralelo, tocar a Breeders. Uma bem-sucedida experiência que não parou na década de 90 e, em março de 2018 trouxe o disco All Nerve. O álbum faz parte do catálogo da clássica label britânica 4AD, a influente gravadora que deixou o som das bandas tátil, medido pelo conceito visual das capas dos discos. Pixies e Deal são norte-americanos, mas a carreira de ambos é popular na Inglaterra.
Laura Ballance juntou-se aos outros três músicos da Superchunk em 1989. A banda está localizada no período entre Sonic Youth e Pixies, com os pés em solo underground, no hardcore alternativo, em um som encorpado diferentemente das outras duas artistas, Laura tem uma figura discreta e firme. Veio dela e do vocalista Mac McCaughan a criação da Merge Records, gravadora independente, que há mais de 30 anos cria meios para a comercialização da música indie.
Alê Briganti, a baixista paulistana entre elas, guarda aproximação com Laura. A banda da Alê, a Pin Ups, formada nos anos 90 é uma das poucas nacionais inseridas no catálogo de videoclipes da MTV Brasil com a marca de “banda alternativa”, algo restrito às americanas e inglesas. Superchunk é influência próxima para Pin Ups, que tocou com eles na capital paulista, em 1998 e nos anos 2000. Alê se desenha em minha memória como o primeiro comentário crítico sobre as letras dos Raimundos. A vocalista da Pin Ups era voz contracorrente em meio à popularidade da banda na MTV. Chamar a atenção e dizer: isso é machismo. Essa letra é sexista, não ecoava tão fortemente e a discussão sobre mulheres na música passava longe da visibilidade atual.
Tocar o céu
No Sonic Youth, a imagem de Kim Gordon simboliza a amplitude dos perfis expostos sucintamente acima. E por que Kim? Ela faz a linha de baixistas que não acompanham o som da banda, mas contribuem à música em sua performance. Refiro-me ao rock alternativo e ao punk rock, talvez não nessa ordem. Mas ao desbravar dessas vertentes, que possibilitam – ainda que existam as limitações do patriarcado nas artes – um espaço para questionamentos e reviravoltas.
Embora não seja isso que salte aos olhos. O relance não é o som, mas a forma. Falando sobre o indie rock, temos Gina Arnold, que deixou a crítica musical para se dedicar aos estudos de gênero, e hoje é professora visitante na Evergreen State University, com passagens pelas Universidades de Stanford e de São Francisco, na Califórnia. Um de seus livros mais marcantes, e responsáveis pela sua guinada do jornalismo à academia, foi Exile in Guyville (2014) publicado pela coleção 33 1/3, mais conhecida no Brasil como “O livro do disco”, da Editora Bloomsbury Academy.
O título é homônimo à estreia da cantora e compositora estadunidense Liz Phair, no indie rock, em 1993. Na obra literária, Arnold desvenda em ácida análise como Phair, hoje com 54 anos, teve que encarar uma cena inóspita para as mulheres na música. Entre tantas qualidades do livro, Arnold define o indie rock em sua visão (tradução livre): “Guitarras melódicas, rock direto, sem mudanças extravagantes de acordes, produzido por indivíduos que se consideram trabalhando fora do que chamam o mainstream da indústria musical.”
Se enxergar como outsider e tocar o céu, criando um microcosmo que se dissemina provocando uma revolução. O que estava aqui, mudou de lugar. Essa foi uma das contribuições das instrumentistas citadas, as quais escolheram o contrabaixo e se posicionaram no canto do palco, mas não no canto da indústria musical. A difícil tarefa de equilibrar o sexismo de uma cultura nas cordas disruptivas de um instrumento. E, por isso mesmo, esse sentido se amplia e tem em Kim Gordon um grande exemplo.
Antes de entrar no Sonic Youth, Gordon estudou artes visuais na Otis Arts Institute, no centro de Los Angeles. Para além da formação acadêmica, interessava-se em transitar por diferentes meios para elaborar o seu material criativo que a tornam uma artista visual que se expressa na música e na performance. Kim não se enquadra e diversifica sua atuação, monta e remonta as linhas do seu emaranhado, mas organizado, baú de referências. Do it yourself, DIY, faça você mesma. A expressão está no punk rock.
Em conversa com a atriz e guitarrista Carrie Brownstein, da banda Sleater-Kinney, em 2015, quando estava em turnê de lançamento do seu livro de memórias, A Garota da Banda, contou sobre as suas primeiras influências. Gordon explica que o baixo estava conectado a um estilo apreciado por ela, com uma sonoridade mais baixa, e cita Sid Vicious baixista dos Sex Pistols como uma figura interessante nesse cenário, em grande aspecto devido à imagem, à performance articulada pelo teatro do punk rock. Teatro que ganhou ares experimentais e de microfonia na sua banda e em seu primeiro álbum solo, No Home Record, de 2019.
Embora tenha projetos paralelos no decorrer da carreira, Free Kitten e Body / Head são a conjunção de suas influências expostas em som, voz, figurino e audiovisual. No Home Record, as canções chegaram ao público com performance da tela, já que os videoclipes, similares a mini filmes, apresentam curtas personas em cada música: “Air BnB”, “Sketch Artist”, “Earthquake”,”Hungry Baby”, este último com a participação de sua filha, Coco Gordon-Moore.
Independente de qual seja a música, o meio de expressão não se restringe ao som. Desta forma, o contrabaixo foi o instrumento escolhido por essas artistas, mas a atuação não se encerra na música, pois esbarra eletricamente em dimensões esticadas das artes. As instrumentistas também escrevem suas letras, escolhem como se apresentar e qual a maneira de interagir com a audiência. Mostram-se no modo de vestir e decidem a mensagem da roupa que ocupam. Ao mesmo tempo em que integram grupos de instrumentistas homens, de diferentes origens, conseguem forjar junto a eles um grupo musical que demonstra unidade do todo e a singularidade da parte delas.
Kim Gordon vislumbra sua atuação na performance, primada no equilíbrio entre a improvisação do som e o planejamento da mensagem, originada do punk. Codirigiu com o cineasta Spike Jonze o clipe “Cannonball”, do Breeders de Kim Deal e, em parceria com a estilista Daisy von Furth fundou a marca de roupas X-Girl, em 1994, que mesmo de breve duração, é reverenciada como cool.
Tendo em Kim Gordon como o símbolo de resistência e renovação, Kim Deal, Laura Ballance e Alê Briganti também costuram as suas influências ritmadas pela personalidade e autoralidade, deixando escapar pelos dedos, em cada corda dissonante, os clichês imagéticos do que seria a mulher no rock independente em uma sociedade machista.