A questão está longe de ser respondida, mas conversamos com cinco pessoas que podem nos ajudar a enxergar caminhos para um futuro mais acolhedor.
Texto Livia Ramirez
Foto Marcela Valverde
É difícil saber onde você quer chegar, mas não saber chegar lá de fato. Como tornar as meninas e menines interessades em música? Seria tornar a cena mais segura? Educação dos mais jovens? Criar espaços inclusivos? Como nós podemos ajudar na descoberta dessa arte, um tanto quanto acessível, e incentivar esse fortalecimento? Naturalmente, a conversa sempre se voltava para a questão do espaço. Dentre as cinco pessoas com as mais diversas respostas para as mesmas perguntas, a pauta naturalmente se transformou em “espaço seguro”, ou seja, um ambiente onde você não será hostilizado.
A maioria das falas faz referência à idade adolescente ou adulta, mas o lugar que nos fazem ocupar está cravado há décadas, então é uma perspectiva que nos acompanha pela vida toda. Parece que saímos do assunto, mas não é bem assim. É impossível também desvencilhar esse assunto do feminismo. Incentivo, fortalecimento, acolhimento, feminismo… uma coisa é ligada à outra. A resposta mais constante foi que precisamos sempre nos questionar e é necessário criar espaços de acolhimento e fortalecimento. E esses espaços não precisam ser físicos, como bem aprendemos com o isolamento social durante a pandemia. Ele pode, inclusive, ser essa revista que você está lendo.
Não consigo desvencilhar a autoestima dessa questão. Não adianta só você incentivar, eles tem que se apropriar disso. Se apropriar do seu espaço, do que você faz, de quem você é. Tenho dois filhos que se identificam como meninos e a Elena, de cinco anos, que se identifica como menina, e é impressionante a diferença entre eles nesse sentido, o Nicolas e o Pablo nunca questionaram a capacidade deles. Isso está muito ligado a tudo, veículos de comunicação, internet, a quem você vê fazer, quem está nos postos de comando, tudo isso influi para nossa representatividade ou não.
Quando você vive nessa sociedade que te diz o que você deve ser, como você se apropria do espaço? Como posso? Como vou construir algo? Como vou tocar guitarra se não tenho tempo? Uma das coisas que mais debatemos no Motim enquanto resistência artística e local de convivência é o quanto podemos subverter o que nós vivemos. Contestamos esse conceito do que é sucesso, do que é dar certo. Temos que nos questionar porque de que adianta eu falar, ‘Monta uma banda, ensaia vinte e quatro horas por dia, vende seu peixe’ se eu não te der ferramentas que te possibilitem fazer isso? Eu e a Roberta (uma das sócias do Motim) somos mães e como vamos fazer um evento da meia noite às cinco da manhã, no qual nenhuma outra mãe pode estar presente? Não tem um lugar pro bebê dormir se precisar, não tem trocador… Para nós estarmos ali, entendemos que nossos filhos são da nossa comunidade, todos estão torcendo por nós, as pessoas são de fato nossa rede de apoio.
Acho que pra gente incentivar meninas e menines a frequentar esse lugar, ele tem que ser um pouco menos agressivo, tem que ser um lugar com acolhimento.
O contrabaixista, Victor Wooten, diz que temos que aprender música como aprendemos a falar. Ninguém aprende através do formalismo da gramática, quando você é criança, você aprende a falar fazendo uma jam com adultos que são experts na fala. E você nunca diz pra uma criança ‘Aprende a falar pra depois vir conversar comigo’, mas na música a gente tem muito isso ‘Aprende a tocar primeiro pra depois vir tocar comigo’. Precisamos quebrar esse formalismo da aprendizagem. E quando pensamos em mulheres e pessoas LGBTQIA+, precisamos de uma atenção ainda maior, pois são corpos que sofrem várias opressões que os inibem de se expressarem.
As Clandestinas se conheceram na militância e a banda surge do nosso desejo de, literalmente, amplificar as nossas vozes, para que nossas bandeiras e gritos de luta fossem ouvidos. E é graças à militância que encontramos espaço para nos desenvolver como banda. Os coletivos de militância LGBTQIA+ e feminista de Jundiaí, respectivamente, Cume e Coisarada, têm eventos e intervenções culturais que proporcionaram esse espaço pra nos apresentarmos, um espaço de acolhimento protagonizado por mulheres. Imagina se nós três, mais velhas, sem saber tocar e cantar direito, não tivéssemos esse espaço onde, mesmo com erros e tudo mais, as manas diziam ‘Vocês arrasaram, continuem’. Talvez não teríamos continuado.
Quando participei do Rock and Roll Camp For Girls nos EUA, minha primeira, e mais significativa, impressão foi perceber a força do projeto. Perceber como as meninas estavam experienciando estar com outras meninas e se expressar através da música. Me senti representada, sinto que poder tocar um instrumento, ter uma banda, poder se expressar através da música é super empoderador. É fortalecedor utilizar a arte como forma de protesto e de expressão.
O que mais me cativa no Camp é essa bolha de amor, de perceber que está todo mundo junto, confiando uma na outra, se incentivando. Um ambiente positivo de autoestima, libertador, de poder ser você, de ser aceita como você é. Acho que isso é um espaço muito poderoso e de transformação. Foi esse ambiente que tentei trazer e acredito que conseguimos fazer isso aqui no Brasil com o Girls Rock Camp. Me inspirou muito a possibilidade de compartilhar essa sensação de tocar um instrumento e criar um ambiente de cooperação e solidariedade, de estar junto e poder crescer junto. Acho que poder ofertar isso pro maior número de meninas e menines possível é realmente transformador.
Além do Girls Rock Camp, também fazemos o Minha Mãe é Rock ‘n’ Roll, que tem a proposta do empoderamento feminista de mães, pois muitas vezes nós, mães, somos esquecidas pelo feminismo. É muito difícil não se ver acolhida nos ambientes, principalmente nos espaços que supostamente são libertadores e ambientes de debate. Faltam espaços para as crianças.
Eu me sentia oprimide, eu era uma pessoa LGBTQIA+ que queria sair do interior pra ser quem eu era. Apesar de amar Ribeirão Preto e não querer sair daqui, eu precisei. Cheguei em São Paulo fugide, querendo minha liberdade como pessoa LGBTQIA+. Gravei um disco de indie rock e durante dois anos toquei muito em SESC, por todo o interior de São Paulo. Comecei a ficar conhecide na rede de amigues artistas independentes como ‘a pessoa que tocava muito no SESC’.
Até que muitas mulheres e cantoras começaram a se aproximar e perguntar como eu fazia. Quando vi, tinha muitas amigas artistas, conheci o feminismo e comecei a entender as questões de feminismo na música e também o que eu passava e tinha passado até ali. Comecei a repensar essa lógica: porque minha banda só tem homem? Porque só gravei com homem? Comecei também a ajudar algumas artistas e nisso surgiu a SÊLA, que é um selo para mulheres na música.
Não tinha como a SÊLA não sair, minha vida foi sendo construída para isso. Ainda mais com tanta mulher se ferrando com produtores nojentos, que acham que são donos das artistas e muitas outras situações ruins. Também foi assim com o queernejo e o Fivela Fest. Havia eu, Gabeu, Alice Marcone e Bemti, falei ‘Pronto, já existe, é um movimento’. Eu costumo dizer que pra gente existir, tivemos que inventar um espaço. As pessoas falam, ‘Mas isso não é segregar’? Vocês segregaram a gente a vida inteira, agora estou criando meu espaço aqui, seguro.
Apesar de sermos uma banda punk, tocamos em eventos com diversidade musical, com versatilidade do que é música preta. Então adentramos espaços com diversidade musical, racial, sexual e etc. Tocamos também em eventos que abraçam outras diversidades, então você atinge o público preto, o público LGBTQIA+, as mulheres… E esses são ambientes muito mais calorosos do que um evento exclusivamente punk, em que você vê majoritariamente homens. Os eventos punk e hardcore são os mais cheios. Eu frequento, encontro muitos amigos, mas acaba sendo um role mais exclusivo. Muitas vezes te chamam pra tocar em um line-up onde, de vinte bandas, tem uma com mulheres na formação. Hoje existem inúmeras bandas com mulheres, mas ainda rola isso.
Acho que hoje ainda é necessário criar nossos espaços, e até que não precisemos mais fazer isso, até que seja natural estar entre todos.
Uma versão editada dessa matéria foi publicada com um erro na sétima edição da revistaimpressa. Conversamos com Livia para subir uma versão corrigida no site com o pronome correto de Gali Galó, que se identifica como não binárie. Entendemos nosso erro e ficamos chateadas que isso tenha ocorrido. Nós vamos nos atentar para momentos assim não se repetirem, e também repensar o nosso processo de edição. Muito obrigada aos nossos colaboradores por sua sinceridade e parceria em tudo isso.