No ano em que a cantora mineira completaria 80 anos, recordamos as gravações da década de 1970, o período mais importante da sua carreira
Texto Thuanny Judes
Foto Divulgação
Independente do estilo de som que você curta, com certeza já ouviu a voz de Clara Nunes. Seu timbre e interpretação inconfundíveis já deram vida a canções de diversos compositores, de Chico Buarque a Cartola. Cantando músicas que foram pano de fundo para um Brasil de muitas faces, em uma época em que gravadoras argumentavam que mulheres não vendiam discos, Clara quebrou a regra. Sacudiu, sambou, cantou um país de herança africana e de diversos retratos culturais. Neste 12 de agosto, a cantora completaria 80 anos.
Nascida em 1942, Clara Francisca Gonçalves ficou órfã muito cedo. Filha de Manuel Pereira e Amélia Gonçalves Nunes, a caçula e os seis irmãos viviam de maneira muito humilde na cidade de Paraopeba, atual Caetanópolis, em Minas Gerais. Ainda criança, cantava na igreja e ouvia nomes como Ângela Maria, Carmem Costa, Elizeth Cardoso e Dalva de Oliveira. A música já era tão forte na sua vida que, ainda na infância, venceu seu primeiro concurso, organizado na cidade em que nasceu. Cantou “Recuerdos de Ypacaraí” e, como prêmio, ganhou um vestido azul.
Tendo se mudado às pressas para Belo Horizonte por conta de um crime cometido por seu irmão mais velho, Clara Francisca trabalha como tecelã na fábrica Renascença. No início dos anos 1960, conhece Jadir Ambrósio, que se impressiona com sua voz e a leva para se apresentar em programas de rádio. Um tempo depois, mas ainda na mesma década, Aurino Araújo (irmão de Eduardo Araújo, uma das peças-chave da Jovem Guarda) apresenta Clara para outros artistas e produtores, ajudando a abrir as portas para sua carreira. É nessa época que decide adotar o sobrenome de sua mãe, passando a se apresentar como Clara Nunes.
Em 1960, ela vence a primeira etapa do concurso A Voz de Ouro do ABC com a música “Serenata do Adeus”, de Vinicius de Moraes. Foi para a final, ficando com o terceiro lugar, que lhe rendeu a oportunidade de gravar um compacto com contrato assinado pela Odeon. A partir disso, ficou impossível conciliar a rotina da fábrica com a das apresentações que surgiram. Clara decide, então, seguir seu grande sonho: o de ser uma cantora de sucesso na música brasileira. É aí que inicia a trajetória profissional de uma das cantoras mais importantes da nossa música.
Em 1965, ela se muda para o Rio de Janeiro, imaginando ter maiores oportunidades na carreira artística. Se apresenta em casas noturnas, festivais e programas de rádio e TV cantando músicas românticas e boleros. Depois de um teste no mesmo ano, foi contratada pela Odeon, lançando três álbuns entre 1966 e 1970. O repertório era de boleros, sambas-canções, bastante focado em músicas românticas. Embora tenha conseguido alguma notoriedade no período por conta de sua interpretação marcante, os álbuns foram um fracasso em vendas. “A Clara cantava qualquer estilo de música. Qualquer música que nós fizéssemos e a Clara cantasse se encaixaria na voz dela. Ela tinha esse sentimento, que se identificava com qualquer estilo”, afirma o compositor Toninho Nascimento em entrevista à Balaclava.
Tudo muda na década de 1970 após um convite de Ivon Curi para uma apresentação em Luanda, capital da Angola. Clara se inspira e se apaixona por tudo que vê no país, e ao notar essa identificação, Adelzon Alves sugere uma mudança, que ele chama de projeto audiovisual. A partir de então, Clara adota uma estética inspirada na cultura afro-brasileira e, com ela, vem o samba como principal linguagem musical. A nova fase começa a se materializar em 1971, com o sucesso de “Ê Baiana”, do álbum Clara Nunes, lançado neste ano. Ao cantar a ligação África-Bahia com um novo visual marcante, a intérprete se torna sucesso nas rádios.
Na cultura e na música, o samba de morro, junto com seus intérpretes e compositores, era resistência na luta dos artistas brasileiros contra a invasão da música americana nas rádios, que se fortaleciam nas trilhas internacionais das novelas. Nas gravadoras, também não havia interesse em investir em samba. Clara e diversos outros artistas da década de 1970, como Martinho da Vila, tiveram grande importância na hora de unir entretenimento, música e resistência cultural e social em uma retomada do estilo musical nas graças do grande público. Para Giovanna Dealtry (autora de Clara Nunes: Guerreira, livro da série O Livro do Disco, da editora Cobogó), foi o talento pessoal de Clara e de outros nomes, somado a uma grande rede formada por compositores de quadra, dos subúrbios, produtores e jornalistas interessados em uma aproximação com a cultura brasileira representada pelas camadas populares que fez com que o samba voltasse a ganhar espaço novamente nas rádios.
Clara teve a oportunidade de mostrar seu grande talento como intérprete de samba através de composições de Candeia, Toninho Nascimento, Romildo Bastos, Noca da Portela, entre outros. Sua voz acaba se tornando uma das mediadoras da cultura popular na década de 1970, que pode ser dividida em dois momentos quando falamos de sua carreira: a primeira metade, com o canto do sagrado, da ligação entre África e Bahia, da espiritualidade brasileira; e a segunda metade, expandindo a sonoridade, explorando outros estilos populares e incluindo discussões sobre racismo e divisão de classes.
Para além dessas questões, também é importante ver como Clara abriu portas para que outras cantoras de samba ganhassem os ouvidos das gravadoras, que não tinham interesse em contratar vozes femininas. Em entrevista, Giovanna afirma: “Hoje você vai ouvir uma série de mulheres falando de ancestralidade, falando da África. Não tem como apagá-la”.
Da década de ouro para a mineira guerreira, mergulhamos em cinco de seus álbuns que a colocam como voz fundamental em uma época de resgate e afirmação cultural.
O álbum é uma marca forte do projeto audiovisual de Adelzon Alves que, até o momento, era produtor e companheiro de Clara. O disco, produzido por ele e por Milton Miranda, tem repertório centrado no misticismo e na afro-religiosidade brasileira, com canções como “Nanaê, Nanã, Naiana”, “Menino Deus” e “Conto de Areia”, um grande sucesso de Toninho Nascimento na voz da cantora. Essa foi a primeira composição do letrista a fazer sucesso e a ser cantada por Clara. Escrita com Romildo Bastos, com quem tinha parceria exclusiva, a música abriu portas para recomendações de novas composições para a voz da mineira.
Por conta disso, o compositor considera a cantora um divisor de águas na sua vida: “Foi a primeira música que eu participo fazendo a letra que foi gravada, e foi por Clara, e teve o sucesso que teve. Por isso que toda a minha história musical como compositor começa a partir de ‘Conto de Areia’”, revela Toninho Nascimento. A música é baseada em uma história popular que o letrista ouviu na Bahia sobre uma mulher que vagava pelas praias juntando conchas e guardava em sua casa em montinhos desde que seu amor, um pescador, sumiu no mar.
O álbum é um marco como início da segunda fase da cantora nos anos 1970, assumindo novos ritmos e sonoridades brasileiras, além de trazer mudanças em sua impostação vocal, mais afastadas do samba-canção que a acompanhou na década anterior. Este também foi o último disco produzido por Adelzon.
Destaque: “Conto de Areia”, “Meu Sapato Já Furou” e “Nanaê, Nanã, Naiana”.
O repertório desse disco é um dos mais populares de Clara. Produzido por Renato Corrêa e Hélio Delmiro, ele comprova o êxito comercial de Alvorecer e segue consagrando a cantora como uma das maiores intérpretes do samba. Seu repertório tem composições de Cartola, Candeia, Ismael Silva, Toninho Nascimento e Romildo Bastos. Um dos maiores sucessos é “O Mar Serenou”, de Candeia. “A Deusa dos Orixás”, outra canção de Toninho e Romildo a cair nas graças do público, foi escrita a pedido de Clara devido ao sucesso de “Conto de Areia” no álbum anterior. A letra é baseada no mito de Iansã, Ogum e Xangô. “Juízo Final”, samba de Nelson Cavaquinho e Élcio Soares que você deve lembrar na voz de Alcione, tem uma de suas melhores versões nesse disco, na voz de Clara. “Que Sejas Bem Feliz”, de Cartola, encerra o álbum em canto melancólico de Clara, acompanhada apenas de um violão.
No ano do lançamento do álbum, Clara se casa com Paulo César Pinheiro, que conheceu em 1964 na quadra de samba da Portela, sua escola do coração. Imagina-se que o compositor tenha tido influência nas novas escolhas musicais de Clara, como podemos ver nos discos seguintes.
Destaques: “O Mar Serenou”, “A Deusa dos Orixás” e “Juízo Final”.
Esse foi o primeiro disco de Clara produzido por Paulo César Pinheiro. É a partir desse álbum que passamos a ver um número maior de composições que questionam o mito da harmonia e da democracia racial, como na música que dá nome ao álbum, composição de Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro.
“Alvoroço no Sertão”, de Raymundo Evangelista e Aldair Soares, reforça a construção de uma identidade cultural brasileira bastante plural e diversa, com diferentes sonoridades. A herança africana ainda se faz presente, como em “Fuzuê”, de Romildo Bastos e Toninho Nascimento, que explica a origem da canção: “Como tanto ‘Conto de Areia’ quanto ‘A Deusa dos Orixás’ têm um caráter regionalista e religioso, eu tinha que achar um tema que tivesse essas características. E eu achei algo na capoeira. Conversando com Romildo, eu perguntei como tocava berimbau. Ele era ritmista, disse como tocava, aí eu fiz a letra em cima de uma batida, de um tema de capoeira”.
Apesar de ser uma grande referência para o samba, o álbum traz outros ritmos, como as valsas “Ai, Quem Me Dera”, de Vinicius de Moraes, e “Basta Um Dia”, de Chico Buarque. À essa altura da carreira, Clara canta a música popular brasileira em seu amplo e completo sentido.
Destaques: “Canto das Três Raças”, “Embala Eu” e “Lama”.
Produzido por Paulo César Pinheiro e Roberto Corrêa, o disco é uma das marcas da segunda fase da década de 1970 para Clara Nunes. Para Giovanna Dealtry, o álbum é uma narrativa do percurso da cantora até então. “Guerreira”, composição de Paulo César e João Nogueira, abre o álbum como uma assinatura da mineira que cantava o samba e o povo brasileiro.
“Moeda”, uma das músicas mais fortes do álbum, é uma composição de Toninho Nascimento e Romildo Bastos. A letra de Toninho canta a construção da identidade brasileira: “Nessa letra, eu falo da minha identidade cultural e também sobre as minhas vivências como brasileiro, porque eu nasci em Belém, morei algum tempo em Macapá, Porto Velho, até que vim pro Rio de Janeiro. Mas essa vivência na região amazônica ficou muito registrada em mim, nas minhas lembranças, e é mais ou menos isso que eu passo na letra. E o Romildo tinha essa capacidade de colocar na melodia o espírito da letra”, explica.
Ainda sobre a parceria de Toninho e Romildo, Clara já havia afirmado que só gravaria músicas compostas pela dupla. No entanto, a faixa “Zambelê”, que entra no álbum creditada à Rosa, é uma composição de Toninho Nascimento, que afirma nunca ter contado para a cantora sobre a autoria: “Eu assino como Rosa, justamente por causa dessa proibição. A letra é minha, a melodia é do Catoni. Coloquei o nome Rosa, que era o nome da minha esposa na época. A Clara nunca soube. Eu só contei isso depois que ela não estava mais aqui com a gente, no livro do Vagner Fernandes”.
Destaques: “Guerreira”, “Jogo de Angola” e “Moeda”.
Em seu 14º álbum, Clara traz o Brasil mestiço no repertório e na capa, que mostra a cantora com um vestido branco e Vovó Maria Joana com vestimentas de santo segurando um cachimbo. Ao fundo, Mestre Darcy do Jongo toca caxambu, enquanto as duas dançam. O visual se entrelaça a canções como “Morena de Angola”, na qual se faz presente uma africanidade popular, comum na construção da identidade brasileira da época, “Viola de Penedo”, que traz a sonoridade do sertão brasileira na composição de Luís Bandeira, e “Dia A Dia” e “Brasil Mestiço Santuário da Fé”, que cantam a rotina do trabalhador e pintam um retrato cultural e social do qual Clara havia começado a se aproximar ainda na década anterior.
A inspiração para esse álbum foi a sua segunda viagem para Angola, representando o Brasil ao lado de outros artistas no Projeto Kalunga. Um deles era Chico Buarque, que compôs “Morena de Angola” por conta dessa viagem. “Brasil Mestiço” é um dos discos mais bem sucedidos da carreira de Clara, não só por ultrapassar dois milhões de exemplares vendidos, mas também por ter gerado o show Clara Mestiça, dirigido por Bibi Ferreira, e por cantar a cultura popular e suas mais diversas manifestações.
Destaques: “Morena de Angola”, “Brasil Mestiço Santuário da Fé” e “Peixe com Côco”.
Este álbum é um dos que coloca Clara como autora de si mesma. Em entrevista à revista Música, em fevereiro de 1980, a cantora afirma: “É o disco que está mais Clara, Clara Nunes, foi tudo escolhido por mim”. A obra também revela uma artista muito mais preocupada com o sofrimento e a pobreza da população do que em seus primeiros álbuns, muito mais ligados à religiosidade afro-brasileira. Além de estar no título, a esperança está também presente no repertório, tudo escolhido por Clara.
Como Clara não era compositora, é muito fácil se deixar enganar por uma versão da história em que ela não tivesse uma voz ativa em suas produções. A relação profissional e amorosa com Adelzon e Paulo César também pode nos deixar cair nessa armadilha. No entanto, ao contrário do que muitos pensam, Clara não era apenas a voz belíssima e a performance carismática no palco. Apesar do auxílio de outras figuras importantes em sua carreira, era de Clara a decisão final sobre estética, repertório, compositores e músicos, como boa filha de Ogum com Iansã. Poucos anos depois, em 2 de abril de 1983, faleceu precocemente por conta de complicações de uma cirurgia.
Destaques: “Minha Gente do Morro”, “Linha do Mar”, “Feira de Mangaio”.