“Aquele Balaclava Fest abriu um vórtex no meio da Audio Club, deixando tudo mais psicodelicamente quântico, super-espiritual-musical, elasticamente místico, porém, absurdamente real ou mesmo perfeitamente tangível.”
Texto Danilo Sevali
Foto Rodrigo Gianesi
Nos últimos dias de outubro de 2018 (faltando menos de uma semana pro Balaclava Fest), recebi uma mensagem do Fernando Dotta, com um recado curto e direto: “Bicho, pintou uma oportunidade de última hora e queremos indicar você para substituir o tecladista no show da Mercury Rev, topas?”.
Impactado. Aquilo me pegou tão de surpresa que pedi umas horas para assimilar o choque e analisar a proposta, mesmo com uma resposta em mente. Saí meio tremelicando para andar de skate e jogar um vento na cachola, rindo à toa com o convite inesperado e me encantando com qualquer pardalzinho que piasse do meu lado.
Fiquei assim: numa vibe meio bobo-alegre na sessão rodinhas, já cantando mentalmente e relembrando alguns clássicos da psicodelia-indie-sonhadora que os Revs criaram. Principalmente dos anos 1990, exatamente a fase que seria composto o repertório da banda no festival, tocando na íntegra o aclamado (e cheio de hits) Deserter’s Songs (1998). Cachorrada pouca na minha cuca era bobagem.
Quando voltei para casa com a coragem renovada, mandei a positiva pro Dotta. Nessa ele já me colocou em contato via email com a dupla Grasshoper e Jonathan Donahue, dois verdadeiros lordes da lisergia noise norte-americana. Ambos me trataram com muita atenção e solicitude, e no tom das mensagens, havia uma certa urgência também.
Definitivamente, eu encarava aquela missão como algo de significado espiritual, um sentimento de conexão com algo muito louco e inexplicável. Ainda mais em um ano tão conturbado, como aquele de 2018, ano em que o fascismo já dava as horríveis caras pelo Brasil.
Enfim, o primeiro passo dessa troca de emails foram os chord charts (a famosa “colinha”), uma tabela com todos os acordes na sequência estrutural de cada música. Ali eu já tinha uma noção da responsa grande que teria pela frente.
Prontamente, comecei a ouvir o disco na versão instrumental que (graças a Jah) o grupo havia disponibilizado online. Os Revs também me mandaram uns bootlegs deles tocando o repertório ao vivo na íntegra, tipo uma sessão recente da banda na formação e na pegada atual.
Não sei porque, talvez a psicomagia intuitiva, optei por transpor via caneta bic a tabela dos acordes para um caderninho, escrevendo cada sequência a mão. Considerei aquele ato como algo que me daria força – e crença – para conseguir atingir o objetivo em um espaço tão curto de tempo, afinal, faltavam apenas cinco dias para o show.
Como diria um bêbado qualquer: “quem acredita sempre alcança”. Assim iniciei minha jornada rumo aos meandros rítmicos e melódicos de uma das bandas underrated mais influentes da nossa geração, e das vindouras e das passadas também. E que mundo mais deslumbrante!
Redescobrir aquelas Canções do Desertor foi como descortinar novas fases de um teatro mágico, que conhecia apenas pelas superfícies da simples audição. De certa forma, elas já estavam enraizadas em mim, o que facilitou um bocadinho o processo de aprendizagem.
Decidi dar um Google para descobrir quem era o tecladista que acompanhava a banda atualmente, e para o meu espanto era ninguém menos que Jesse Chandler, cabeça criativa por detrás da banda texana Midlake. Nossa, a pressão (assim como a honraria) só aumentava. Descobri também que devido a um acidente com um membro de sua família, Jesse não viajaria para a turnê sul americana do Mercury Rev. Pedi autorização de amizade pra ele no Face e foi aceita, um bom presságio.
A semana não tardou em passar, e numa das trocas de email com a dupla, perguntei inocentemente se teríamos tempo para algum ensaio presencial pré-show. Estava louco para (tietar), conhecê-los pessoalmente, tirar umas dúvidas, umas fotos pro insta, etc.
A resposta do Donahue também foi certeira e pontual: “Unfortunately not. Hang on tight, it’ll be a wild ride”. Mix de emoções batendo no peito, ansiedade num nível acima do normal, mas firme no processo de memorizar cada acorde ou fraseado das músicas que compunham o repertório.
Continuei ensaiando entre cinco a seis horas diárias, daí eis que rola outro email e eles me perguntam se consigo arranjar um órgão transistorizado da Vox para tocar no dia. Eu coço a cabeça e penso: “puuuuts que específico, caras. Uma máquina rara dessas”. Respondo dizendo que uso um Kurzweil com uns pedais de phase e delay analógico. Eles respondem: “Ok! Just learn the main chords and pads for the songs but feel free to add tap delays and psychedelic efx to make it lively and your own style. Thank you! Looking very forward to meeting and playing with you. We apologize it’s under such strange circumstances”.
O mês de novembro já se faz presente, continuo nos meus ensaios, e por vezes me divertindo demais com “The Funny Bird” e “Endlessly”. Em outras horas, surtando com as complexidades de “Pick Up if You’re There” e “Opus 40”. Concentração e memória era tudo o que eu mais buscava, mas, francamente, para um pothead convicto, nem sempre é tão fácil assim.
Hora do show
Dia 4 de novembro amanhece e um espírito de hoje-é-o-dia surge com o primeiro trago de café preto. Já é hora de se arrumar e partir na Kombosa até a capital para a passagem de som na Audio Club e finalmente encontrá-los.
Nesse momento, minha cabeça pilhada não se sentiria até mesmo mais tranquila em contato com aquelas lendárias personalidades, e foi exatamente isso o que aconteceu. O primeiro que me saudou (com muita simpatia) foi o Grasshoper. Já em cima do palco, seu estilo era impecável, o próprio Joe Cool da música alternativa. Notei também que J. Donahue andava de um lado para o outro meio apressado em vista de que havia algum problema com a sua guitarra, e que a equipe técnica se prontificou para resolver, e assim rolou.
Encontrar o pessoal do time Balaclava por lá também me deu uma boa aterrada, me senti em casa e a passagem evoluiu sem surpresas (volumes, timbres e retorno checados, posicionamento no palco demarcado). Tudo foi se encaixando naturalmente entre risadas e alguns mini-ensaios das músicas, era tudo o que eu teria para enfrentar o show. De certa maneira, eu até flutuava um pouco fora do chão.
Partiu concentração e “relaxar” no backstage. Confesso aqui que o camarim do Balaclava Fest estava melhor que o camarim do Sesc (risos). Umas garrafas de vinho tinto chileno, queijo importado, distribuição gratuita de pisantes da Converse, mini hot-dogs, Warpaint, Kiko e Juçara, conversas sobre a floresta Amazônica, All-Star falsificado, mais risadas e o BPM do coração aumentando exponencialmente.
Nessas, o Barbagallo já está mandando ver no seu set, então faltava pouco para o show, e eu ali fingindo que estava tranquileba, enquanto entornava mais uma taça de Cabernet. A produção avisa que é hora do show, geral revisa os últimos detalhes do visu.
Do lado de fora do camarim, vejo o Grasshoper ensaiando uns passos de boxe, dando uns pulinhos e golpeando o ar repetidas vezes. No momento seguinte, ele para e puxa um Ohm, incentivando os que estavam próximos a fazer o mesmo. O mantra acontece, e na sequência todos caem na gargalhada, catarse pura.
O J. Donahue chega perto de mim e arruma o meu casaco, que devia estar meio mal ajambrado e desce num pinote as escadarias rumo ao palco. Pelos olhos, ele me passava uma confiança enorme, uma serenidade.
Paro ao lado de Grasshoper na escada, ele fica me encarando por trás dos óculos escuros com um sorrisinho de canto no rosto. Eu pergunto se posso abraçá-lo e ele apenas me estende os braços para que o ato se realize. Desejamos um bom show um pro outro.
Quando eu pisco o olho, já me vejo sentado na frente do teclado iniciando os primeiros acordes de “Holes”. Tento me reconectar com a realidade, olho um pouco para a plateia enquanto toco, e percebo feições de genuína emoção (encontro até algum rosto conhecido ou outro). A nave decolou e a sequência “Tonite it Shows”, “Endlessly” e “Opus 40” se encerra com uma muito bem vinda jam inesperada, e extremamente barulhenta, algo que já foi logo arrancando aplausos efusivos da plateia! A banda não veio pra brincadeira e entregava um show absurdamente poderoso.
Em “Hudson Line”, já me sentia tão confortável que um sorriso grudou no meu rosto e não soltou até o final. Me deleitando com a emocionante “Goddess on a Highway”, bangueando e fritando nos efeitos em “Funny Bird”, e crescendo até o final apoteótico de “The Dark is Rising”.
Talvez uma lágrima discreta tenha escorrido no meu rosto, ou era apenas aquela máquina de fumaça que deixava tudo ainda mais onírico. John Donahue ia de integrante a integrante, meio que dando uns passes xamânicos na galera com um movimento teatral e impactante – jogava os braços pra frente emitindo raios invisíveis aos olhos do mais incrédulo…
Aquele dia abriu um vórtex de tempo e espaço no meio da Audio Club, deixando tudo mais psicodelicamente quântico, super-espiritual-musical, elasticamente místico, porém, absurdamente real ou mesmo perfeitamente tangível.
O som do desertor dos Revs saudou, em volume máximo, os que ali foram ungidos pela liturgia noise do sonhador. Ao fim, uma frase reverberou no vazio da última nota: “…in my dreams i’m always so strong”. Eu vivo dentro desse sonho até hoje.