Alto astral, altas transas, lindas canções

Há 45 anos, Caetano, Gil, Gal e Bethânia formavam os Doces Bárbaros, o supergrupo que marcou a história da MPB. A criação do coletivo também representa um valioso registro cultural da época da ditadura, especialmente quando não era fácil ser doce. 

Texto Lucas Vieira
Foto Divulgação 

Dezenas de pessoas na praia de Ipanema. Bocas se beijando, pingentes com simbolo hippie, violão, gente tomando sol. A cena, que não descreve um momento de aglomeração na pandemia, vem de uma charge de Ziraldo publicada em 1972 no Pasquim. No meio de tantas pessoas, um dos personagens diz: “essa praia era uma beleza antes da invasão dos baihunos”.

O termo “baihunos” começou a aparecer nas páginas do jornal da Zona Sul do Rio de Janeiro se dirigindo diretamente ao grupo de artistas da Bahia que se destacava na MPB – Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia e Gal Costa, entre outros. O apelido pejorativo unia as palavras “baiano” com “hunos” – povo bárbaro chinês do século IV, conhecido por invadir e saquear territórios estrangeiros.

Se durante o período do Pasquim chefiado por Tarso de Castro os baianos eram queridos, quando Gil e Caetano voltaram do exílio em 1972 o ambiente era outro. Com mudanças na redação, a cadeira do editor-chefe foi invadida pelo conservadorismo de Millôr Fernandes, que passou a representar a ala dos colaboradores mais reacionários do veículo.

Artistas que hoje dispensam apresentações, Gil, Caê, Bethânia e Gal iniciaram suas carreiras de forma coletiva, se reunindo no palco pela primeira vez em 1964, na Bahia. A estreia ocorreu no espetáculo “Nós, Por Exemplo”, que contou com os nomes de Djalma Corrêa e Alcyvando Luz, e marcou a abertura do Teatro Vila Velha, em Salvador. Ainda antes da fama, participaram de outros shows coletivos, como “Arena Canta Bahia” e “Nova Bossa Velha, Velha Bossa Nova”.

O ano de 1976 marcou os dez anos do início da carreira individual dos membros do quarteto. Para comemorar, formaram novamente um coletivo para excursionar pelas principais capitais do Brasil com um show de repertório inédito.

O incômodo gerado pelo termo xenófobo teve, enfim, uma utilidade: para representar que, com amor no coração, o quarteto preparou a invasão, o show e o grupo foram batizados de Doces Bárbaros. O nome também teve influência de Jorge Mautner, que em uma conversa com Caetano na praia de Ipanema – a mesma do cartum de Ziraldo – disse: “Jesus é que é o doce bárbaro. Foi ele quem conseguiu destruir o império romano com a doçura, o perdão e a compaixão. Os outros bárbaros não conseguiram nem um milésimo disso”.

Para o show, reuniram uma banda de apoio com alguns dos músicos mais requisitados do período: Djalma Corrêa (percussão), Arnaldo Brandão (baixo), Chiquinho Azevedo (bateria), Tomás Improta (piano), Perinho Santana (guitarra) e a dupla Tuzé de Abreu e Mauro Senise (saxofones e flautas). Em algumas músicas, Gilberto Gil e Caetano Veloso assumiram os violões.

O figurino também era especial: creditado no prospecto a “Will” e também atribuído a Flávio Império, segundo reportagem da revista Capricho o guarda-roupa principal do show homenageava os orixás protetores de cada um dos artistas e suas cores. Xangô (Gilberto Gil, vermelho e branco), Oxalá (Maria Bethânia, branco), Iansã (Gal Costa, vermelho) e Ubualama (Caetano Veloso, azul).

Esboço cenário Flávio Império.
Cenário na foto de Abelardo Alves (Acervo Flávio Império).

Flávio Império também foi o responsável pela cenografia do espetáculo. Segundo o site do artista, a rotunda em que o show foi ambientado foi planejada para ser usada em diversos locais, incluindo estádios e ginásios esportivos, com uma enorme flâmula, que surgia inteira no espaço cênico. Sobre o fundo colorido, o cenógrafo aplicou signos geométricos como estrelas, bandeiras de São João, o raio de Xangô e uma lua, além da Estrela de David simbolizando a liberdade do quarteto.

O repertório foi feito em sua maior parte por canções inéditas.  Números interpretados por todo o quarteto e outros em dueto, deram ênfase às performances vocais. O som era complementado pelos arranjos cheios de baianidade e timbres do pop rock que faziam a cabeça da juventude brasileira daquele período.

Interpretações marcantes como “Atiraste Uma Pedra” e “O Seu Amor”, em que os quatro baianos assumem a voz principal em diferentes momentos, a versão roqueira de “Fé Cega, Faca Amolada” – lançada por Milton Nascimento um ano antes, no LP “Minas”– e o dueto de Gal e Bethânia em “Esotérico” fizeram do show um sucesso imediato. Além da turnê programada inicialmente para passar por dez capitais brasileiras, o supergrupo lançou suas músicas em compacto e depois em LP duplo, gravou clipe para o programa dominical Fantástico (indicativo de sucesso na época) e fez parte da trilha sonora da primeira versão de “Sítio do Picapau Amarelo” da TV Globo, com a canção “Peixe”.

Foto Mario Luiz Thompson

No espetáculo houve espaço para experimentações na canção “Tarasca Guidon” (Waly Sailormoon), misturando concretismo com o samba de roda de Santo Amaro da Purificação, homenagem à Rita Lee em “Quando” e às festas juninas com “São João, Xangô Menino” e para contar a história do rock com a poética de Gilberto Gil em “Chuck Berry Fields Forever”. O destaque ficou para “Os Mais Doces Bárbaros”, uma resposta direta à xenofobia do Pasquim: “Com amor no coração/ Preparamos a invasão/ Cheios de felicidade/ Entramos na cidade amada”.

Porém a turnê não teve apenas bons momentos. Durante a passagem do grupo por Florianópolis, uma batida policial no hotel levou Gilberto Gil e o baterista Chiquinho Azevedo presos por porte de maconha. Os músicos possuíam uma pequena quantidade de erva e, por determinação do juiz, deveriam ser internados em um hospital psiquiátrico. Após negociação em audiência, os artistas puderam retornar ao Rio de Janeiro, onde foram obrigados a comparecer semanalmente ao Sanatório Botafogo para tratamento.

O episódio, assim como os bastidores e números musicais da turnê, foram registrados no filme também batizado de “Doces Bárbaros”, dirigido por Jom Tob Azulay. Além de ensaios, entrevistas e momentos curiosos como o encontro com os Novos Baianos em um camarim, trechos da audiência de Gil e Chiquinho Azevedo são exibidos, com um momento emblemático em que o cantor disfarçadamente debocha do discurso conservador do júri.

A prisão dos artistas resultou no cancelamento de shows já marcados da excursão por outras capitais brasileiras. Contudo, após a volta de Florianópolis para o Rio de Janeiro, fizeram uma série de 32 shows na cidade, até o mês de setembro.

Encerrada a temporada, os artistas voltaram às suas carreiras solos e, mesmo separados, sempre tiveram uma relação marcada pela parceria, que segue até hoje. Apresentados quando o movimento hippie perdia a força no Brasil, os Doces Bárbaros marcaram a história da MPB com um registro musical valioso durante a ditadura militar, quando não era fácil ser doce. 

Passados 18 anos da estreia, os Doces Bárbaros foram homenageados pela escola de samba carioca Mangueira, em desfile realizado no ano de 1994, com o samba-enredo “Atrás da Verde-Rosa Só Não Vai Quem Já Morreu”. Para retribuir a homenagem, o quarteto se reuniu em show único, realizado na quadra da agremiação em 15 de janeiro daquele ano.

Foto Luiz Carlos Fontes

Com objetivo de arrecadar fundos para a escola, o espetáculo teve um roteiro bastante diferente do show original. Com ingressos esgotados, os baianos cantaram parte do repertório separados, apresentando sucessos de suas carreiras individuais, canções em homenagem à agremiação e se reuniram como quarteto apenas nas três últimas músicas – “Os Mais Doces Bárbaros”, “Exaltação à Mangueira” e o samba-enredo que os homenageia. Exibido em especial pela TV Bandeirantes, o evento também trouxe a primeira apresentação de “Onde o Rio é Mais Baiano”, composição de Caetano Veloso em homenagem à Mangueira. 

Mesmo com a agremiação tendo se posicionado em décimo-primeiro lugar no carnaval de 1994, a linda homenagem é até hoje lembrada e “Atrás da Verde Rosa”, que recebeu nota máxima da comissão julgadora, é considerado um dos grandes sambas-enredos dos anos 1990. Meses após o carnaval, em junho, Doces Bárbaros e Mangueira se reuniram mais uma vez, para a primeira apresentação internacional do grupo, na Inglaterra.

Participando do Festival da Bahia, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa e 50 músicos da Mangueira, subiram ao palco do Royal Albert Hall, em Londres, e foram assistidos por uma plateia de cinco mil pessoas. Com a mesma estrutura do show de janeiro, cantaram repertórios individuais e se reuniram ao fim do concerto.

Na virada do milênio o quarteto se reuniria mais três vezes. A primeira foi no ano 2000, para a gravação de um CD em reverência ao Esporte Clube Bahia. Sem registro em quarteto, “Doces Bárbaros Bahia 2000” trouxe Caetano e Gil cantando individualmente e Gal e Bethânia em dueto. No carnaval de 2001, subiram no trio elétrico em Salvador em homenagem a Dorival Caymmi, grande referência na carreira dos artistas.

Em 2002 aconteceu a última reunião do quarteto, a mais parecida com a original, registrada em filme e CD batizado “Outros (doces) Bárbaros”. Unindo trechos de entrevistas, ensaios, bastidores e apresentações ao vivo, a obra dirigida por Andrucha Waddington mostrou os Doces Bárbaros mais maduros, preservando grande parte do repertório do LP, porém com arranjos menos roqueiros. Entre as novas faixas, destaca-se “Outros Bárbaros”, composição de Gilberto Gil que traz a pergunta: “Será que ainda temos o que fazer na cidade?”. A resposta, claro, era (e ainda é) “sim”.

Dezenove anos depois, data em que também completam-se 45 anos da turnê original, os Doces Bárbaros seguem cheios do que fazer na cidade, todos com mais de 75 anos e em plena atividade. Em 2021, Gal gravou “Nenhuma Dor”, obra em que revisita sua carreira ao lado de talentos da nova geração. Bethânia lançou “Noturno”, disco que mantém a qualidade ímpar de sua discografia. Enquanto prepara seu novo álbum, “Meu Coco”, Caetano Veloso está em turnê pela Europa, assim como Gilberto Gil.

Será que o público verá de novo uma reunião dos Doces Bárbaros? Mistério sempre há de pintar por aí!

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