A artista entra em nova fase com “Habilidades Extraordinárias”, álbum que encara questões atuais e se aproxima de processos analógicos
Texto Thaís Ferreira
Foto Nino Andres Biasizzo
O quinto álbum de estúdio de Tulipa Ruiz, Habilidades Extraordinárias, chegou nos primeiros momentos da primavera e interrompeu o intervalo de sete anos desde seu último trabalho de inéditas. Foi ainda na turnê de Tu (2017) que a cantora e compositora paulistana se deparou com o termo que dá nome ao novo disco e também funciona como fio condutor das 11 faixas.
Para se apresentar no Lincoln Center, em Nova York, em 2019, Tulipa precisava de um visto de trabalho. Acompanhada pelo seu irmão e produtor Gustavo Ruiz, foi entrevistada por um cônsul estadunidense, que a despertou do marasmo burocrático ao perguntar se eles tinham alguma habilidade extraordinária. Sem saber exatamente o que se encaixaria nesse leque, Tulipa disse que não, enquanto seu irmão afirmou que sim, eles haviam recebido um Grammy em 2015 por melhor álbum de pop contemporâneo com o álbum Dancê.
O passaporte foi então carimbado na hora, e Tulipa descobriu que a pergunta estava relacionada a uma categoria específica de visto para quem se destaca em áreas como a música, ciências e esportes. Mesmo que esse seja o caso de Tulipa, que neste ano recebeu uma nova indicação ao Grammy — desta vez como uma das compositoras da música Baby 95, interpretada por Liniker e escrita pelas duas em parceria com Tássia Reis e Mahmundi — e também tem na bagagem uma composição gravada por Elza Soares e um álbum feito em parceria com João Donato –, para ela, ter habilidades extraordinárias vai além disso.
“O disco é resultado de muita força, de muita habilidade exigida para atravessar esse contemporâneo tão dolorido”, conta. Assim, Tulipa explora nas novas canções temas relevantes ao debate público, como questões políticas e ambientais. Outro fator que influenciou o processo de feitura do álbum foi o isolamento social. Depois de tanto tempo afastada dos estúdios e sem encontrar seus parceiros musicais, a artista queria estar o mais presente possível ao gravar as canções. Isso a levou a fazer os registros, pela primeira vez, em fita, agarrando-se ao analógico e deixando o computador de lado.
À Revista Balaclava, Tulipa Ruiz fala de seu retorno, compartilha como foi colaborar com nomes como Liniker e Negro Leo e também comenta suas expectativas em relação à nova fase da carreira.
Qual é a sensação de compartilhar um novo trabalho?
Estou feliz, estava com muita saudade de gravar. Foi um disco muito prazeroso de fazer. Dentro de todas as urgências dele, eu consegui desfrutar do processo, e está sendo muito interessante esse momento de ter feito o disco – antes ele estava na nossa cabeça –, e, agora, colocar ele no mundo, ver os seus desdobramentos nas pessoas. O retorno tem sido muito interessante, as pessoas amalgamando esse disco com o repertório delas. E agora eu estou na estiga de fazer o show, eu quero ir para a estrada com essas músicas.
Por trás do nome do álbum, existe uma história relacionada a reconhecer as suas próprias habilidades extraordinárias. Como é usar as suas habilidades para transitar por temas como política, meio ambiente e os direitos das mulheres?
Eu acho que são temas que têm atravessado a gente o tempo todo, não só nos nossos ofícios. Eles têm impactado a gente socialmente, politicamente, espiritualmente, coletivamente, individualmente. Então, eu não tive como fugir desses atravessamentos e foi muito importante falar sobre eles dessa maneira, colocá-los no meu processo. E isso me fortaleceu demais.
Kamikaze Total foi coescrita com Liniker e Vitor Hugo. E no restante do álbum, há participações de nomes como Negro Leo, Jonas Sá e João Donato. Você pode falar um pouco sobre essas colaborações?
Eu costumo muito fazer música com o Gustavo [Ruiz], né? Acho que pelo fato de sermos irmãos e termos crescido com a mesma vitrola, existe uma intimidade, uma parceria que é infinita, é muito forte. Eu estou acostumada a fazer música sozinha e com o Gustavo. Exercitar outras parcerias é uma novidade.
Só que eu tenho amigas e amigos específicos com quem também flui muito bem. É o que acontece com Liniker e Vitor Hugo. E no caso de “Kamikaze Total”, foi uma letra que eu comecei e cheguei num precipício. Eu não tinha muito pra onde ir, e às vezes eu preciso de parcerias que me ajudem a pular desse precipício, não a sair dele. É como eu lido com isso, com coragem, sabe? Então Liniker e Vitor Hugo chegaram chegando nessa letra, foi muito fluido. Essa música é o resultado de muitas catarses.
E, durante o disco, as presenças foram acontecendo. “Pluma Black” com a presença do Leo ficou fundamental porque a gente timbra de um jeito que eu acho um barato. A gente foi gravar no Rio, no estúdio do Jonas Sá. O Léo estava no Rio. Quando a gente soube disso, eu falei: “Pluma Black tem tudo a ver com o Léo. Será que ele topa gravar?”. E aí falamos: “Leo, estamos gravando, corre aqui”. Ele chegou e comeu a música com farinha. Essa foi a participação do Leo, o processo pediu a presença dele.
Do Jonas, a gente foi pro estúdio dele gravar sintetizador, os teclados do disco e o João [Donato] também. Ali no meio do processo, eu falei “Jonas, vamos cantar uma”, então esse feat nasceu no processo ali com ele.
Já a presença do João foi pensada, intuída, porque ele virou um parceiro, uma pessoa presente na música que eu faço. A única live presencial com banda, que eu fiz na pandemia, foi com João Donato. Então, é o tônus do João, a genialidade e a presença dele agora é um negócio que a gente precisa celebrar e desfrutar o tempo todo. O João no disco é uma pérola que eu só agradeço.
Da sua discografia, este é o segundo álbum em que você aparece na capa. Como foi entender o que encaixaria melhor no caso de Habilidades Extraordinárias?
O processo foi falando. Eu sempre achei que as minhas capas todas seriam um desenho, porque eu comecei a desenhar por gostar de capa de disco. Para mim, o desenho está muito dentro dessa coisa da imagem e do som.
No segundo disco, Tudo Tanto (2012), eu já tinha feito um desenho para a capa, que é o desenho que está na contracapa, e o Jorge Bispo, fotógrafo da capa do Tudo Tanto, chegou com uma foto que ele tinha feito minha enquadrada, muito parecida com o meu desenho. Era para ser um desenho, mas essa foto me atravessou, chegou pra mim desse jeito. O Tudo Tanto, acidentalmente, tem uma foto que está misturada com desenho. Ela está misturada de alguma maneira.
O Habilidades Extraordinárias não teve espaço para o desenho. Eu fiquei completamente entregue ao som. O desdobramento gráfico desse disco tem a ver com o processo de ter sido gravado na fita. Então a gente fez um ensaio com máquina analógica também. Acho que isso acabou acabou trazendo a sonoridade do disco: ele não tem desenho, ele não tem cor. São fotos analógicas em preto e branco. Acho que a sonoridade do disco que determinou isso. E eu fui entendendo e respeitando. Queria que tivesse desenho, mas eles não vieram. Talvez eles venham de outra maneira, talvez em algum clipe. Eu ainda não sei, porque realmente gosto de pensar em ilustrações para as músicas. Mas esse registro aconteceu de um outro jeito.
O disco foi gravado na fita ao invés de no computador. “Não Pira” tem um verso em que você canta “Rebobinou e revelou”, que são termos que trazem lembranças de ferramentas já não tão usadas hoje. O que motivou esse retorno ao analógico?
Foi pensado, mas foi muito intuído também. A gente está vindo de isolamento, de muitos atravessamentos. Os encontros estão voltando a acontecer agora. Os shows voltando a acontecer agora. A gente queria muito estar em estúdio com presença. Gravar na fita determinou isso, chamou a nossa presença.
A fita tem a coisa da máquina fotográfica, que é uma curadoria. Quando a gente vai tirar uma foto analógica existe uma curadoria do olhar. O hiper-registro não acontece no analógico, só se você tiver 70 mil filmes, mas mesmo assim. A fita é a mesma coisa, a gente não fica na onda do hiper-registro, a gente fica na onda de estar ali presente pro que a gente gravou valer. Então isso determinou muito o nosso estado de espírito nessa gravação. A gente estava muito presente pra na hora que apertasse o REC, estava valendo.
Foram poucos takes. Foi uma coisa do meu processo que eu nunca tinha vivido. Normalmente, quando a gente grava no digital, a gente grava as guias de voz. Depois a gente grava as coberturas, os overdubs de todos do disco, e a voz valendo é por último no processo. Eu nunca tinha gravado a voz antes, a voz durante. Alguma vez ou outra, a voz guia foi pro disco, mas normalmente não é assim. E depois de ficar tanto tempo sem se encontrar, gravar um disco ao vivo, olho no olho, valendo, determinou muito a nossa presença e muito som. Eu nunca tinha gravado na fita, ela tem uma compressão, uma saturação, a captação quando a gente passa pro digital já vem com um som específico, que a gente fica buscando no digital. Já chegar do jeito que a gente busca é muito especial.
Você escolheu o primeiro dia da primavera para lançar o álbum, e ele encerra num tom positivo, com O Recado da Flor. O que você espera da nova fase da sua carreira?
Acho que eu lanço o disco no momento em que a gente está num turning point, num ponto de virada muito determinante. Eu espero que a gente consiga virar. Acho que o disco fortalece esse momento de muitas maneiras. Em tantas disputas e tanta confusão nas narrativas todas, eu tenho buscado me pautar em arte. A gente vem de um plano sequência em que a classe artística foi muito atacada. Seguir fazendo arte, conseguindo fazer arte nesse momento e colocar nosso trabalho nas vitrolas do agora, nos players do agora, onde o tempo todo o contemporâneo, o atual governo quer que a gente se silencie, é muito importante.
A gente vem também de uma pandemia de um vírus que é direcionado à espécie humana. Precisamos rever nossas relações todas com a política, com a gente, com a outra pessoa e, sobretudo, com a natureza. Esse recado está sendo dado o tempo todo. É um disco que fala da natureza de dentro e da natureza de fora da gente. Esse disco é urgente, fala sobre coisas duras, feito no meio de um apocalipse, mas que tem muita coragem e muita esperança, porque isso é uma das habilidades extraordinárias que temos no momento.
Vamos nessa. Vamos virar. A gente tem que dar um jeito. Não dá pra ser assim. A gente não aceita. Então se a gente não aceita, a gente quer florescer, renascer, brotar de outra maneira.
Shows de lançamento de Habilidades Extraordinárias no Sesc Pinheiros: 14, 15 e 16 de outubro. Mais informações aqui.