Em seu primeiro trabalho solo, a guitarrista e produtora musical explora novas possibilidades a partir de uma perspectiva intimista
Texto Jorja Moura
Foto Gabi Carrera
Em dezembro de 2021, a produtora musical, compositora e guitarrista Navalha Carrera apresentou ao mundo o seu primeiro disco solo: Ondas Consideráveis, um trabalho instrumental e experimental, além de etéreo e hipnotizante. Ela é uma das guitarristas mais icônicas da nossa nova geração, que ganhou destaque ao assinar os solos e a produção musical dos dois discos de Letrux. Agora, a multi instrumentista coloca no mundo seis composições gravadas em seu home studio. E que para além da guitarra, ela tocou baixo, piano e sintetizadores, e ainda realizou as programações, produção musical e a mixagem. A artista também contou com a colaboração dos músicos Lourenço Vasconcellos e Tomás Gonzaga, e masterização de Kátia Dotto.
Quando surgiu a ideia desse projeto? Como foi o processo de composição e gravação?
O projeto surgiu a partir de um show que fiz para o Festival TransArte (um festival de artistas trans aqui do Rio de Janeiro), onde escolhi me apresentar sozinha, tocando sintetizador, guitarra e drum machine ao mesmo tempo. Com o desafio auto imposto, fui compondo músicas que conseguiria executar dentro dessas limitações. Fiz mais alguns shows neste formato, e surgiu a vontade de registrar num disco. O processo da gravação abriu a possibilidade de ir além das limitações, e acabei me empolgando e incluindo muito mais instrumentos do que conseguiria executar ao vivo.
Quando eu ouvi o “Ondas” percebi uma certa sensibilidade e uma melancolia muito presente ali, algo muito belo também. Como foi abrir a intimidade?
Esse disco é uma abertura da minha intimidade, mesmo… Sempre gostei de músicas lentas, introspectivas, e tento colocar isso nos trabalhos que faço, mesmo quando é dentro da música pop. Muitas vezes, ao longo da minha carreira, recebi críticas por querer trazer essa perspectiva introvertida, que pode ser lida como anti-pop. Aqui, quis deixar ela explícita. Sinto que é um trabalho que só pude realizar após minha transição de gênero, pois tem a ver com não ocultar sua própria verdade.
A sua arte pode significar possíveis futuros para corpas trans – como eu e você –, onde novas gerações possam enxergar em você referências para elas. E eu vejo que o mercado musical tem trazido possibilidades de corpas como nós ocuparmos e podermos criar nossa arte em vários lugares, mas no que você acha que ainda é necessário melhorar?
Apesar de, neste momento, me colocar como artista, o meu trabalho na música geralmente acontece acompanhando o trabalho de outra pessoa. Seja compondo trilha para um filme, produzindo e arranjando músicas de algume compositore, tocando guitarra ao lado de ume cantore. Acho interessante ser uma pessoa trans nessa posição, porque geralmente quando estamos na arte, estamos no centro do palco, com as luzes em cima de nós. Isso é maravilhoso, mas existem outras formas de trabalhar na arte também, inclusive em funções mais técnicas, como engenheires de som, produção executiva, etc. Sinto que ter pessoas trans como ícones no centro do palco corrobora uma visão cisgênera da mulher trans empoderada, que supera adversidades e sobe num palco bancando sua verdade, servindo de exemplo para pessoas cis. Para mim, é igualmente importante ver pessoas trans trabalhando em todos os setores da arte, seja posicionando microfones ou fazendo planilhas.
Seu disco traz elementos suaves que se misturam com texturas psicodélicas e baterias eletrônicas, em simultâneo contraste e harmonia. Quais foram as suas referências? Quem são as artistas que te inspiram?
Muita gente me inspira! Por conta de umas aulas que dei durante a pandemia, pesquisei um bocado sobre música experimental de meados do século XX, gente como John Cage, Terry Riley e Steve Reich, a reconceitualização da música presente na obra desses compositores me interessa muito. A música psicodélica dos anos 60/70 são também uma eterna inspiração, pela busca inesgotável por sonoridades diferentes e a vontade de desbravar sem perder o senso de diversão. Wendy Carlos, mulher trans pioneira da música eletrônica é também uma grande musa. Junto de tudo isso, tenho um fascínio muito grande por músicas de rituais religiosos, de diversas culturas. Principalmente quando essas músicas tem como proposta a indução do transe, que sinto que é algo que eu busco nas minhas composições.
Junto com o lançamento do álbum, você decidiu criar um material físico intitulado Fótons Consideráveis. Como ele surgiu nessa narrativa?
O Fótons Consideráveis funciona como um substituto para a tiragem física do disco. De certa forma é uma coisa meio retrofuturista, por que ao mesmo tempo que eu não via sentido em fazer um CD ou LP, também queria que o disco existisse para além do espaço virtual. Então a solução foi esse kit de material gráfico, com pôster, cartões postais e uma zine. Essa zine inclui a ficha técnica do disco e um conto que eu mesma escrevi, que amarra conceitualmente o disco (embora de forma obscura rs). Juntando tudo, é uma espécie de encarte, uma lembrança física das músicas.
Além do lançamento do seu disco, você participou da faixa “Noite Preta” (versão da música de Vange Leonel) com Zélia Duncan. E ainda atua nos palcos junto com a Letrux e banda. Quais são os seus planos para 2022? Pretende fazer shows solo?
Ainda está difícil fazer planos! Penso em fazer shows desse disco, mas já não gostaria mais de fazer one-woman-band. Quero outras pessoas no palco comigo, celebrar a união. No mais, quero focar cada vez mais na minha carreira de produtora musical e explorar alguns conceitos musicais que pesquisei durante a pandemia, talvez em um mestrado.