Investigamos a questão com a ajuda de Vivian Kuczynski, Rafaela Prestes e Ana Frango Elétrico. Entre falácias, processos, nuances e tecnologia, a arte de mixar não tem uma única resposta. Entenda mais a seguir:
Texto Renata Moniz
Fotos Lívia Rodrigues e Francisco Wolf, Hick Duarte e Leon Diniz
Quantas etapas existem para fazer um bolo? Várias. Primeiro, a receita, depois, a seleção e compra dos ingredientes, para então dispor de todos esses elementos em um recipiente. Dali em diante, é necessário uma boa forma e uma ótima batedeira para que o bolo seja assado da melhor forma. Afinal, de nada adianta ter todos os ingredientes se você não tiver os elementos finais. Essa metáfora do bolo é uma ótima maneira para explicar um trabalho que aparentemente parece ser tão técnico: a mixagem.
“Na mix você vai cuidar de tudo, da voz, de todos os instrumentos usados, de todos os canais, todas essas questões artísticas”, diz Vivian Kuczynski, 18 anos, cantora, compositora, produtora e mixadora. É nesse momento que começa tanto a resolução de problemas ligados à gravação (uma voz que ficou baixa, por exemplo), quanto a parte criativa – como juntar os elementos. Mas afinal, quando termina a mix e onde começa a master? “Na master, você tem que pegar a mix (um negócio pronto) para colocar em um padrão de volume. Além da especificação técnica de como cada streaming recebe aquela música. Nessa etapa é preciso pensar em adequar isso no disco como um todo”, explica Rafaela Prestes, 31 anos, mixadora (responsável por Goela Abaixo da Liniker e os Caramelows, e Só, último disco da Adriana Calcanhotto, dentre tantos outros.)
Em um cenário ideal, com tempo e orçamento, todos os envolvidos na criação de uma música deveriam tirar um dia para experimentar equipamentos e possibilidades, mas como isso não está sobrando, o que acontece é algo mais ágil e objetivo, com poucas brechas de experimentação. Tanto quem é o produtor musical, como essa pessoa conduziu a gravação, são fatores fundamentais para amarrar e definir o processo de mixagem.
“É muito importante que essa pessoa construa um arranjo já pensando em como ele vai funcionar na mixagem. O ideal é quando você tem tudo muito amarrado. Você faz uma pré do disco junto do produtor e artista, discutindo objetivos, sensações, referências para pensar em quais equipamentos, ou como gravar”, explica Rafaela. No caso de Vivian, quando a artista vai produzir ou mixar o trabalho de colaboradoras, já imagina o resultado final. “Sinto que o estudo técnico do áudio em mixagem é muito negligenciado por alguns produtores brasileiros. Eles ficam com a mentalidade de que só vão produzir aquilo e que todos os problemas serão resolvidos na mix”, garante a curitibana.
“Resolve na mix” é uma das falácias mais reproduzidas dentro desse meio. De alguma maneira, com o passar dos anos, a tecnologia virou sinônimo de mágica, onde todos os problemas possíveis podem ser resolvidos. Claro que uma parcela significativa de imperfeições podem ser resolvidas, mas se engana quem pensa que, uma voz mal captada, ou um instrumento embolado, possam ser magicamente reconstruídos. “Por exemplo, a questão do arranjo, a pessoa grava um monte de instrumentos, pira nisso, mas quando você vai mixar aquilo, você tem vários instrumentos, dizendo várias coisas diferentes na mesma região de frequência – e aí não tem magia. Você tem que pensar nisso muito antes, caso contrário, ou alguma coisa vai ficar sumida ou não vai ser priorizada. Quando você não faz o que é melhor para aquilo, você sempre abre mão de alguma coisa, especialmente da qualidade”, afirma Rafaela.
O oposto de “resolve na mix” também é tão problemático. “Eu acho que esse é um dos grandes erros: quem acha que a mixagem não pode ser criativa. Ela pode ser muito criativa e pode fazer muita diferença no disco”, comenta Ana Frango Elétrico, 23 anos, cantora, compositora, poeta e produtora musical. “Na fita, se fosse regravando ia perdendo a qualidade. Então assim, realmente, nós, com os novos meios de produção musical, vamos a fundo na perfeição. Por exemplo, estamos todos acostumados a afinar a voz, não julgo, mas é no mínimo interessante isso de tornar mecânico e robótico uma coisa que a gente não consegue reproduzir ali no ao vivo”, diz Ana.
Talvez o auge da criatividade e das experimentações tenha ocorrido algumas décadas atrás, frente a necessidade de inovar, dentre tantos empecilhos técnicos. “Entre as décadas de 1950 e 70, houve uma exploração de experimentação com equipamentos, muitas técnicas surgiram nesse período. Algo que foi descoberto como erro no passado, nós usamos como efeito hoje em dia, um toque de magia na hora de produzir um disco. Um público leigo pode não entender, não perceber as sutilezas ao escutar, mas quando o negócio bate em você, você sente. Muito do nosso trabalho está em mexer com o inconsciente e com o padrão”, analisa Rafaela.
Parte da nova geração de artistas independentes, Vivian reconhece como as evoluções permitiram mais pessoas terem acesso ao processo musical. “Tanto com o analógico, como com o digital, tem um produto final: a música. Nisso, as pessoas vão se emocionar ou não com aquela música. O processo é relativamente o mesmo para o ouvinte, mas para nós, profissionais da música, mudou tudo”, afirma.
Com todas essas ferramentas na mão, a arte de mixagem se torna algo tão técnico quanto subjetivo. “A mix tem o seu lado artístico, que ao meu ver, faz diferença: você saber entender a proposta que está procurando e construir o projeto pelo som, estética e letra. Primeiro a gente corrige problemas, para depois pirar com a imaginação”, diz Vivian.
No final de todo esse processo, quando a canção chega para o ouvinte (independentemente de ser alguém leigo, ou um entusiasta musical), vale a ponderação: o quanto uma mix pode influenciar a aprovação ou rejeição de quem escuta? “Isso é tão subjetivo. Por exemplo, pensando em uma mixagem ruim: que música estamos falando? Porque às vezes, a coisa é uma parada sujona, mas é o que vai ser a mixagem perfeita para uma banda de punk rock. Então, qual é o parâmetro? Uma coisa que eu tenho entendido e admirado é que até nas paradas mundiais, das músicas que mais bombam, existe autenticidade e ousadia”, divide Ana.
Dentro de um país permeado por crises, desmonte cultural e altas taxas de feminicídios, é imprescindível perguntar: dá para ser mulher e sobreviver trabalhando apenas com mixagem?
“A gente tem que ser dez vezes melhor, dez vezes mais profissional, dez vezes mais pontuais, para conseguir chegar numa posição dez vezes menor do que o cara foda. É muito ruim que até hoje, somos mais desvalorizadas. No Brasil, às vezes, sendo só mixer, em um momento que o mercado está ruim, você vai ter que fazer outra coisa, vai ter que se adaptar, mas dá para trabalhar só com mix, com certeza. Dá para trabalhar só com edição de áudio também, só com música publicitária, são vários mercados. Eu trabalho com várias coisas simplesmente porque eu gosto” – Vivian.
“Quando eu comecei, senti que perdi oportunidades por ser mulher. Tanto por não confiarem no meu trabalho, como por acharem que eu não era profissional o suficiente. Eu senti muito isso no início da carreira, quando você tem uma oportunidade na mão, o fato de você ser mulher te deixa muito mais exposta. Escutar comentários como ‘tem uma mulher fazendo isso aqui’ ou ‘você é a primeira mulher que eu vejo fazendo isso’, tem uma coisa também de não poder errar, e sinto que essa tensão horrível ajudou a elevar mais a qualidade do meu trabalho. Mas, por conta dessas novas oportunidades, tem muitas profissionais mulheres entrando no mercado, e sei que estou cumprindo um papel de abrir portas para as novas gerações. Estamos vivendo uma geração de transição.” – Rafaela.
E essa transição vai se perpetuando claramente quanto maior forem os espaços gerados para falar de mulheres (e a falta delas) dentro de todo o ecossistema musical.