A obra de Artemisia Gentileschi demorou 400 anos para
ser validada e essa espera deixa um questionamento:
ainda estamos invisibilizando as mulheres na arte?
Texto Breno Liguori
Imagem Judith beheading Holofernes (1620) – Artemisia Gentileschi
(Essa matéria foi publicada originalmente na quinta edição impressa da Revista Balaclava, lançada em novembro de 2019).
O percurso das mulheres dentro do mundo artístico foi, durante muito tempo e, de certa forma continua sendo, profundamente desafiador. A maioria das academias de arte só permitiram o acesso delas às aulas após o século XX. Antes disso, havia um número limitado para inscrição de mulheres nessas instituições e, mesmo as que tinham sorte de entrar, tinham sua grade limitada a “fazeres femininos”: artes manuais como tapeçaria, bordados e pequenos formatos de pintura. De forma que, a maioria das artistas que conseguiam obter algum destaque antes dessa virada estavam sempre vinculadas a um mediador masculino que facilitava sua entrada e permanência no mundo artístico.
A italiana Artemisia Gentileschi foi um desses raros casos. Seu pai, o também artista Orazio Gentileschi, incentivava o estudo da filha que, por seu esforço, conseguiu tornar-se aluna de Agostino Tassi. No entanto, aos 18 anos, a jovem foi abusada pelo mestre e, com o apoio do pai, processou-o no ano seguinte. Naquela época, a punição para abuso sexual não existia porque o próprio conceito ainda não tinha sido formulado com clareza. O pai de Artemisia, então, entrou na justiça alegando que um bem material seu havia sido danificado.
E o julgamento foi igualmente inescrupuloso. Durante o processo, a artista foi torturada: um instrumento de pressão era colocado em seus dedos de modo que o apertavam para que ela fosse obrigada a não mentir. Há relatos de que Artemisia gritava: “É verdade!”. Mesmo assim, o abusador não foi preso, mas duas possibilidades lhe foram dadas: cinco anos de trabalho forçado ou deixar Roma. Tassi escolheu a segunda.
Nove anos depois, Artemisia pintou a decapitação de Holofernes por Judith. Em um movimento catártico, colocou no papel de Holofernes o seu abusador e fez-se de Judith no quadro. Em seu semblante, Artemisia (ou Judith) parece querer mascarar, mas sem fazê-lo por completo, um sorriso. O quadro é repleto de simbolismos: a espada remete à cruz cristã, faz um jogo com o maniqueísmo, contrapõe forças femininas a masculinas – conceitos antagônicos e binários que nos cercam até hoje.
Cenas bíblicas onde a mulher é a protagonista tornaram-se, assim, o foco de Artemisia. Especificamente neste quadro, ela trabalha com a precisão de detalhes e remonta o que descreveu no tribunal. Ele subia em cima dela, segurava seus braços e pernas. Mas, agora era sua vez. Apesar de não ser uma transcrição da realidade, há uma potência registrada nessa imagem. Desta vez, no entanto, em nova posição: Artemisia não é mais a vítima passiva, é Judith, a assassina. E é essa tomada de poder à revelia que fez com que a sociedade a descreditasse e questionasse a veracidade do crime. Isso só mudou depois de sua morte – recentemente, inclusive. Com o movimento contemporâneo #MeToo, a obra e história da artista foram revisitadas e redescobertas. Hoje, Artemisia é tida como forte referência da pintura clássica e sua obra é comparada com outros mestres do renascimento como Rafael e Michelangelo.
Foram necessários 400 anos para que uma mulher que se dizia artista pudesse realmente o ser pelos olhos da sociedade. Do século XVII até hoje houve uma mistura perigosa de avanços e retrocessos. A questão que fica é: quem são as Artemisias de hoje? Para perceber isso é preciso revisitar a história e questionar o olhar. Trazer a consciência ao real, à aspereza da vida, para não revisitar o passado no presente e transformar o futuro em uma tentativa violenta de reprodução do que já se foi. ☺