Rita Oliva interpreta três cartas do tarô
Louco, Papisa e Morte em ensaio místico
Texto Isabela Yu Foto Camila Tuon Assistência Charlie Noir
Beleza Amanda Pris Styling Amanda Brolese Direção de Arte Thais Jacoponi
Looks de acervo Rodrigo Evangelista, Minco e Rober Dognani
(Essa matéria foi publicada originalmente na quinta edição impressa da Revista Balaclava, lançada em novembro de 2019).
Frente a frente de seu projeto mais pessoal, a Papisa de Rita Oliva é feita de investigações e meditações, com altas doses de misticismo. Encontrei ocasionalmente a produtora e multi-instrumentista em diferentes fases de suas pesquisas ritualísticas, que a levaram até o disco debut, Fenda. Em um dos meus papos favoritos, falamos sobre rituais de criação em 2017. A matéria deu errado por uma série de motivos e a entrevista nunca foi publicada – até agora.
“Não acho que sou das pessoas mais intuitivas. Nunca tive uma coisa ‘nossa tive isso por intuição e veio’. Sempre busquei um lado sensível. Sempre procurei entender os sentimentos, mas não sei te dizer, assim, se eu sempre fui intuitiva. Fui aprendendo a buscar isso com o tempo – percebendo e prestando atenção”, explicou na época. O período da conversa era o mesmo do início de uma completa transformação que acompanhou as pesquisas do projeto solo. No ano anterior, a artista tinha lançado o primeiro EP com o novo “apelido” de Sacerdotisa, colocando no mundo canções como “Instinto”. Antes ainda de navegar nessa jornada interior, ela fez diversas turnês ao lado dos companheiros das bandas Cabana Café e Parati. Assim como foi instrumentista em outras bandas, como Bike, Thiago Pethit e Laura Wrona.
“Sempre procurei entender os sentimentos, mas não sei te dizer, assim, se eu sempre fui intuitiva. Fui aprendendo a buscar isso com o tempo – percebendo e prestando atenção”
Musicalmente, Rita bebe do indie, do folk alternativo, e da herança das artistas com um pé na bruxaria (Stevie Nicks, Kate Bush, Yoko Ono…). Da nova geração de mulheres mágicas, cita os primeiros trabalhos da inglesa Marika Hackman – “um folk inglês obscuro”–, a ambient music de maneira geral, trilhas sonoras de alguns filmes e as criações de Brian Eno. Para interpretar e produzir as nove canções do disco Fenda, Papisa realizou um detox musical voluntário e criou um acampamento de gravação em sua casa. “Fui testando. Tive uma curva de aprendizado, regravando e estudando áudio”, conta sobre o processo artesanal, que foi interrompido diversas vezes para turnês. O disco conta com participações pontuais, como as vozes de sua banda – Theo Charbel (que também gravou a bateria de “Semente”), Luna França e Stéphanie Fernandes em “Espelho”. Fora isso, o trabalho é fruto das divagações de Rita. “Não começo pela estética, mas pela sensação”, conta sobre a faísca inicial. Algumas músicas são híbridas, com elementos eletrônicos e orgânicos junto. “Nigredo”, a parte da alquimia onde tudo se dissolve, é a única 100% remexida invocando seus diferentes significados a partir do arcano da Morte no tarô. “Sucesso do primeiro processo, que é a dissolução. A destruição de tudo para que surjam novas etapas e algo novo venha”, explica sobre a inspiração.
Fenda fala sobre diferentes tipos de morte, seja ela física, de processos ou de relacionamentos: “Tive um contato orgânico com a morte, de dar de cara com os corpos, isso me impactou muito, foi uma coisa intensa. Falar da morte é o maior mistério que existe, essas são minhas investigações a respeito disso”. Como tudo é cíclico, o nome apareceu no final do processo, arrematando as ideias trabalhadas. Levando em consideração seus caminhos internos, para Rita, o momento que podemos chamar de fenda é o período de suspensão, do final das trajetórias. Ela explica: “Quis trazer essa noção circular com as músicas, porque ter isso no meu dia a dia me ajudou a lidar com essa coisa apegada que a gente tem. A suspensão é como um ritual. Você suspende aquele momento extra cotidiano, por isso que é mágico. Quando você ritualiza, você não tá nem na próxima etapa nem na anterior“. Seja para tomar um café, tirar uma carta do tarô ou fazer um show, são esses momentos de introspecção que trazem alívio para a compositora em meio ao caos diário. “Valorizo meus rituais. Quando você cria o ambiente externo com ações simbólicas e rituais, você cria o estado interno para aquilo, é como eu me preparo”, explica.
No nosso primeiro papo, de dois anos atrás, ela ainda estava caminhando com o que viria a ser algo estabelecido, em busca de uma rotina com um pouco mais de calma: “Comecei a achar muito importante montar meu espaço, chamo de campo ritual, para possibilitar que aquilo se brote de alguma forma. Também comecei a fazer coisas manuais, como pintar ou desenhar. Foi uma forma de expressão que acabou liberando outras formas de se fazer música”, disse na época. No mesmo ano, lançou o show Tempo Espaço Ritual, performance espetáculo no Centro da Terra, com direito a cheirinho próprio e convidadas especiais (Larissa Conforto, Laura Wrona, Luna França e Silvia Tape). O resultado foi tão transformador para o público quanto para as artistas.
Entre as muitas descobertas, a própria Papisa também foi ressignificada com os anos de imersão e estrada: “Encaro a carta como uma professora, que me ensinou muitas coisas nesse processo. Preciso ficar quieta, às vezes. Me empolgo e falo que vou fazer isso ou aquilo. Coloco toda a energia na fala e acaba dispersando porque você joga para fora”. No início, a artista desejava trazer a figura da Sacerdotisa ao palco como força espiritual, ao mesmo tempo em que se aprofundava nos estudos do tarô, essas forças foram fluindo para outras direções.
Para quem acha que a magia fica restrita a estética da Idade Média, a Papisa de Rita é extremamente ligada com o seu entorno e suas manifestações só são possíveis devido ao momento em que vivemos. Na música “A Velha”, talvez a minha preferida, ela escreve sobre dualidades com simbologias da natureza. “Sou aquela mais opaca/De onde a luz nunca escapa/Nem boa, nem ruim“. Ao longo da canção, ela fala sobre não ser nem forte, nem fraca; ser nova, ser velha, ser plural nas diferentes expressões do feminino (ou do ser humano). No caso das mulheres, a contestação do saber único, da personalidade imposta pela sociedade e da obrigatoriedade do “sim” – é como se ela declarasse: “sou várias, impossível seria ser única”. Sobre feminismos e feministas, a produtora, cuja banda é 100% feminina, deseja ações efetivas. Chegou a hora de falarmos sobre interseccionalidades e encarar as coisas como elas são – mulheres são artistas e querem falar sobre processos e não sobre condições. “Foi importante falar disso, mas precisamos ir além do ‘que é ser mulher na música’, quero ver mulheres falando sobre o trabalho delas”, pontua.
Nascida em Jundiaí, mudou há mais de dez anos para São Paulo, cidade que nunca mais deixou. Também teve aulas de piano desde criança, depois se dedicou a guitarra, bateria, baixo, synth e tudo que poderia emitir som. Fez faculdade de Publicidade e Marketing, mas nunca se aprofundou no diploma, sempre optou pela música. “Quando eu era pequenininha era metódico porque treinava piano clássico. Eram horas que eu tinha que sentar e estudar, quase mecânico. Mesmo aquilo já me dava uma noção de foco e concentração, quase uma meditação. E música até hoje tem muito disso, por exemplo, ler minhas letras me ajudam a me conhecer melhor”, explicou na primeira entrevista.
Depois de formada, passou a viajar com os amigos de banda, muitos anos como a única pessoa que passava maquiagem antes do show, ou como uma das únicas artistas do selo. Rita e Liege Leite, do Medialunas, eram exceção no casting essencialmente masculino. “Foi assim que comecei a tocar sozinha. Parati era duo, o Zé (Lanfranchi) errou o mês e viajou. Fiz o show sozinha, depois pensei – olha, consigo fazer sozinha!”, relembra um dos momentos marcantes que trouxeram Papisa à vida. Computador + programação + guitarra, ainda é a combinação que estrutura seu show de formato flexível. “Tenho um relacionamento aberto com a Luna e a Theo, pode chegar junto quando quer”, fala sobre a banda, que ao lado de Stéphanie, completa a formação atual, que, em breve, deve viajar até uma cidade perto de você. Não deixe de vê-las acontecendo. ☺