De Marília Mendonça a Helena Meirelles, como o estilo musical mais ouvido do país, desde sempre, foi marcado pela presença feminina – e porque retomá-las é tão importante
Texto Damy Coelho
Foto Divulgação
A primeira vez que vi Marília Mendonça foi em 2016, durante a cobertura de um festival sertanejo. Ela tinha apenas 21 anos e poucos meses de palco – ainda assim, já tinha emplacado um hit nacional, “Infiel”. Como quem vê close não vê corre, parte do público não imaginava que ela já compunha desde os 12 anos e tentava, desde então, sair dos bastidores para brilhar nos palcos.
Ao entrevistá-la, perguntei se ela considerava que aquele seria finalmente o seu ano. Sem a falsa modéstia comum a muitos artistas, ela respondeu: “Sim, acho que 2016 foi o ano de Marília Mendonça”, falando de si mesma na terceira pessoa, como também é comum a muitos artistas. Mas não sem completar: “se isso aconteceu, eu devo unicamente aos meus fãs”. Marília exaltava o seu público e ele a agraciava de volta. Dali em diante, ela nunca mais sairia do topo.
Na segunda vez em que vi Marília, já não consegui chegar perto: havia pelo menos 100 mil pessoas na minha frente, no show que ela realizou em Belo Horizonte em 2019, parte do projeto Todos Os Cantos. Me chamou a atenção a quantidade de mulheres que estavam ali, das mais distintas origens e histórias de vida, cantando juntas uma mesma canção com mensagens de superação e empoderamento. Fico me perguntando se Marília tinha ideia de quantas amigas fez ao redor do Brasil, sendo finalmente a voz de muitas delas, das amantes às traídas.
Mas Marília iria além: aderiu ao“#elenão”, mesmo vinda de um meio que se opunha a essa ideia. Foi uma das poucas do sertanejo a fazer uma live na sua sala de estar , conscientizando o público a ficar em casa. As pautas progressistas estavam na ponta da língua, reveladas a cada tuíte, mostrando que, sobretudo, era uma mulher do nosso tempo.
Quando morreu precocemente, há quase um ano, Marília Mendonça deixou um vazio no sertanejo. Sua voz potente, sua autenticidade e as mensagens sociais que carregava farão muita falta em um ano como 2022, que exige dos músicos posicionamento incessante – o que nem sempre vemos entre artistas desse estilo musical. O que fica, para a nossa sorte, é o seu legado. E é sobre legado que venho falar aqui.
Caipiras de fato
Para que existisse Marília, outras mulheres precisaram pavimentar o caminho, ainda que de forma sutil. Essas artistas, precursoras, desbravaram horizontes pouco explorados pela mulher no sertanejo – termo, que por si só, já carrega todo o significado da virilidade e da força atribuída ao masculino. Não parecia lugar de mulher, mas ainda assim, elas foram rainhas.
Inezita Barroso
A paulistana Inezita Barroso foi muitas: instrumentista, cantora, compositora, apresentadora, produtora, atriz, pesquisadora e professora universitária. Denunciou o machismo na música caipira ainda nos anos 1960, quando mulher não podia cantar (muito menos tocar viola ou cantar em mesa de bar, coisas que ela faria sem se importar com o julgamento alheio). Diriam que foi uma mulher do século XXI disfarçada no século XX.
Em uma entrevista, revelou só fumar cigarros de palha e ter torrado todo o seu primeiro salário em discos. Quem nunca? Mas a sua paixão mesmo era a música caipira. Muito antes de apresentar o Viola, Minha Viola, na TV Cultura, Inezita rodou sozinha o interior do país no seu jipe para fazer uma profunda pesquisa antropológica sobre a cultura caipira, talvez inspirada pela expedição de Mário de Andrade pelos sertões do Brasil. Mas o projeto não foi aprovado em lugar nenhum e, reza a lenda, ela teria ficado tão chateada que ateou fogo em tudo.
Entre seus registros fonográficos, um chama a atenção: o álbum Inezita Apresenta (1958) em que gravou apenas compositoras, como Zica Bérgami e sua “Lampião de Gás”. Sobre a iniciativa, foi direta: “ninguém queria gravar composições de mulheres”. Então, ela foi lá e o fez.
Helena Meirelles
Quando penso no Pantanal, penso em resistência. Peço perdão por usar termo já batido, mas não há palavra melhor para definir essa terra eternizada do modernismo das pinturas às canções caipiras. O Pantanal já indica que, apesar dos tempos difíceis, a regeneração é de sua natureza.
E foi assim que viveu uma filha dessas terras, Helena Meireles: resistindo e se regenerando. Nasceu no Mato Grosso do Sul, em 1924, e teve uma vida pouco ortodoxa para a época: três casamentos, 11 filhos e o desejo incessante de viver de música. Antes de ser mãe, era violeira. Antes de ser violeira, já aprendera a fazer a própria palheta, usando chifre de boi e um facão. Antes de tocar nos grandes palcos de São Paulo, tocava em um bordel, único lugar que aparentemente aceitaria uma mulher tocando viola.
Seu talento, porém, só foi reconhecido quando idosa – seu sobrinho fez uma fita k7 da tia chegar até os Estados Unidos, na redação da revista Guitar Player. Imagine só, críticos de rock boquiabertos com uma senhora descendente das tribos brasileiras tocando uma viola mais rasgada que qualquer solo de guitarra do Eric Clapton: pois ela se tornaria destaque na revista ao lado do próprio, reconhecida como uma das maiores instrumentistas do mundo.
Inhana (Cascatinha e Inhana)
Muita gente a conhece pela voz doce e potente na música “Índia”, clássica guarânia do repertório caipira, ao lado de seu marido, Cascatinha. Mas Inhana era muito mais: foi considerada uma das maiores vozes da música popular de sua época. Lançou 54 discos de 78 rotações. Antes trabalhava como faxineira, mas sempre soube que queria mesmo é cantar.
Cascatinha, que já tinha dupla sertaneja, ouviu a voz de Inhana em um alto-falante na cidade de Araras e se apaixonou pelo talento (e pela dona daquele timbre). Logo Inhana se tornaria sua primeira voz. Casaram-se – quem fez o pedido foi ela – e juntos foram uma das mais importantes duplas do Brasil.
Inhana na verdade era Ana Eufrosina – “Inhana” seria uma junção de “Ana” e “nhá”, redução de “sinhá”, numa subversão inconsciente do termo. Tornou-se uma das poucas mulheres pretas com sucesso reconhecido na música nacional nos anos 1960.
Roberta Miranda
Assim como Marília, Roberta Miranda começou compondo músicas que viraram sucesso na boca de outros homens: é o caso de “Majestade, o Sabiá”, hit na voz de Jair Rodrigues cuja autoria muitos desconhecem. Por anos, precisou cantar de bar em bar para conseguir um espaço como intérprete. Mas quando conseguiu, o fez com maestria: foi a primeira cantora do país a vender 1,5 milhões de cópias em seu disco de estreia.
Em 1996, ela falou sobre o seu sucesso em uma entrevista a Clayton Aguiar. O repórter afirmou que Roberta Miranda trouxe “uma nova maneira de compor, de cantar… uma postura nova e diferente ao sertanejo”. Mas, por que seria uma maneira “diferente”? Um jeito “novo” de cantar? Seria porque os timbres femininos em uma música sertaneja ainda soavam estranhos aos ouvidos? Ainda mais quando suas músicas tratavam dos desejos femininos?
A resposta dela não poderia ser melhor: “Você reconhece [esse sucesso], mas o próprio meio artístico não reconhece, esse mundo machista de duplas sertanejas… Eu sofri muito pra provar que Roberta Miranda, uma mulher nordestina, tava aí, compondo. Pra eu adquirir a credibilidade e respeito dos meus colegas, demorou muito”.
De mulher pra mulher
Relembrando a história dessas mulheres, vejo um pouco da Marília Mendonça em cada uma, assim como vejo um pouco de Marília nas atuais gerações de meninas do sertanejo. E sei que isso não é coincidência, afinal, se hoje temos mais mulheres compondo nos escritórios de música sertaneja é porque essas e tantas outras, com maestria, abriram os caminhos.
Hoje, não restam dúvidas que a esperança de uma música sertaneja plural reside nas novas gerações de meninas, no queernejo, no sertanejo feito por pretos, por descendentes de povos originários, por nordestinos. Afinal, o sertanejo, por ser tão brasileiro, também deve ser lugar de todos. E isso não é discutível.