Jonathan Ferr brinca com estilos musicais em seu novo disco criado a partir de samples

Do jazz ao hip hop, do soul ao r’n’b, Liberdade explora os diferentes universos da música negra contemporânea 

Texto Thuanny Judes
Foto Renan Oliveira

O trabalho criativo de Jonathan Ferr é pautado no momento presente, e essa abordagem intuitiva está impressa em sua música. Viver o momento, avaliar o que faz ou não sentido e buscar avançar é um processo recorrente na vida do instrumentista de 35 anos, conhecido também como “garoto estandarte do jazz carioca”. Mesmo amando o estilo que o consagrou, Jonathan não se sente preso a ele – está mais interessado em diferentes abordagens e explorar outros estilos musicais. Em agosto do ano passado, por exemplo, ele lançou o single “Lá Fora”, um feat com o produtor musical Lossio e os rappers Zudizilla e Coruja Bc1, e que conta com um sample de “Chuva”, faixa do seu álbum instrumental Cura (2021). A música ganhou uma nova sonoridade e significados adicionais com as “canetadas” dos colaboradores. A track é o ponto de partida da nova fase de sua carreira, sintetizada em Liberdade (2023), criado ao lado de diversos parceiros criativos.

Por que abrir o disco com “Lá Fora”?

Escolha difícil. Essa música fala sobre um lugar de liberdade ligado ao tempo. Liberdade, o disco, surge a partir do Cura. Todos os processos, inclusive. Eu sampleei o disco, chamei alguns amigos produtores musicais e falei para a galera: “Vamos lá, open bar de sample. Fiquem à vontade, podem usar o que vocês quiserem.” E esse lance é uma coisa interessante. Na gringa, a galera usa muito, mas é algo que diverge opiniões. De um lado, você tem o compositor original, a pessoa que colocou dinheiro e tempo, mas que muitas vezes o trabalho não acontece porque não conseguiu chegar aos lugares por diferentes razões como grana ou marketing. Do outro, tem o artista que transforma um trecho da sua música, cria um beat que estoura, faz dinheiro, mas não devolve para o sample original. Dentro dessa brincadeira, tendo a ideia que esse movimento começou com os rappers sampleando batidas para cantar em discos de vinil – algo bem roots – entendo os dois lados. Eu liberto as minhas criações para me ver projetado na leitura de outra pessoa.

Qual foi o critério de seleção para compor o repertório?

Peguei os melhores samples, os que mais me tocaram para começar a compor em cima deles. Depois disso, provoquei os beatmakers a criarem mais coisas e, na sequência, chamei os meus amigos rappers e cantores para fazer uma fusão de jazz, hip hop, soul, r’n’b e eletrônico. Tudo na mesma panela. Uma abordagem livre. “Lá fora” foi a primeira que gravei. Gravamos em São Paulo, no ano passado, quando ainda morava lá. “Enquanto lá fora cai chuva” fala sobre a passagem do tempo. Enquanto chove, estamos aqui adoecendo, postando na internet que estamos felizes, comendo a melhor comida e com o melhor trabalho. Muitas coisas que a contemporaneidade pede – e a gente cede – acabam causando a sensação de não preenchimento, e podem criar um vazio. No texto do Coruja, inclusive, ele fala “finge que sou um influencer, estou fazendo a publi pra tristeza”. Muita coisa acontecendo, tanta coisa que me atravessa, tenho dificuldade de me entender. É uma música que, para mim, fala sobre masculinidades: são três homens negros, de lugares completamente diferentes: eu sou do Rio de Janeiro, o Coruja é de Osasco, e o Zud é de Pelotas. O Zud é pai, vive em outro lugar na forma de exercer a masculinidade e ser artista. Com o videoclipe, também trouxe esse olhar, de como essas fragilidades nos atravessam. Uma coincidência: o disco todo gira em torno da água, a imagem de algo fluido, como a própria liberdade. Criei “Lá Fora” após uma treta com uma pessoa amada. Chovia muito, mas quando sentei no piano apenas saiu esse som, era como se a chuva fosse a extensão do nosso choro.

Por que o auto-sample surgiu agora na sua história? 

As músicas de Cura foram feitas para eu me curar, não tinha pretensão de gravar um disco. Após Trilogia Do Amor (2019), lançar um segundo disco de piano solo foi inusitado, mas mexeu muito comigo. Quis lançar outra coisa a partir disso, então pintou essa ideia do sample. Nesse processo, a galera da Beat Brasilis, de São Paulo, escolheu o Cura para samplear. Eu já queria me aproximar do hip hop, algo que já está comigo porque os meus melhores amigos são do rap. Brinco que sou o jazzista que mais anda com rapper e beatmaker. O pessoal comprou a minha ideia e rolou. Eu já construía o disco na cabeça, mas desejava viver no corpo. Além de que estar em outra cidade proporciona novas experiências, você pode ser mais você, e isso foi muito poderoso.

Além do jazz e hip hop, quais outros estilos estão no álbum? 

Rolou soul com a Tássia Rei, é uma coisa mais r’n’b. Tem uma faixa com a Luedji Luna mais hip hop. A brincadeira é a fusão: não é jazz, é new soul e rap. A brincadeira é ser livre no universo da música negra contemporânea.

Você afirma que depois da Cura, vem a Liberdade. Referindo-se à conexão entre esses dois processos e também à ordem da sua discografia. E depois disso, vem o quê? 

Ah, depois da liberdade, vem a cura de novo. É um processo infinito. Funcionam como uma célula, quando você tem dois núcleos juntos que formam uma terceira coisa. Gosto dessa simbologia. O três precisa de dois elementos diferentes para poder existir. Esse processo de materialização surge a partir de dois elementos anteriores a ele. Sintetizei esses dois processos: me curei e me libertei. Como um sapato que não cabe mais, não vou usar algo apertado porque eu acho bonito. Vou tirar do armário e colocar outra coisa. Aquilo que se está, não permanente, mas com altos e baixos. A gente vai se emancipando ao entrar em contato com outras pessoas que também vivem esse processo.

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